Afinal, do que estamos falando quando falamos de 'Cat Person', de Kristen Roupenian?
Em 2017, já temos uma boa ideia do que deveria viralizar nas redes sociais. Tapas na cara da sociedade sobre imagem corporal. Vídeos de hamster comendo miniburritos. Ilusões de óptica bizarras. Críticas ferrenhas a Donald Trump (pontos extra se elas forem publicadas em veículos inesperados, como Teen Vogue ou Outdoor Magazine). Textões sem noção em primeira pessoa.
Ficção? Não, ficção não está na lista das coisas que viralizam. Pelo menos não até o início de dezembro, quando a revista norte-americana The New Yorker soltou na internet "Cat Person", conto de Kristen Roupenian, e saiu andando como um astro de filme de ação diante de uma explosão. O que aconteceu? Por que "Cat Person" pegou fogo enquanto tantas outras excelentes histórias da New Yorker fizeram pouco sucesso
Pesquisando sobre a história, antes de lê-la, admito que achei que o auê era porque a The New Yorker tinha publicado um romance sobre uma pessoa que se transformava em um gato ("Cat Person" significa pessoa que gosta de gato, mas também pode ser traduzido como "gateiro" ou "pessoa gato", literalmente). A culpa é da imagem ambígua de um beijo que acompanha o texto. Na verdade, "Cat Person" fascinou os leitores por outro motivo: a maneira realista e inabalável usada para descrever uma transa não tão boa assim entre uma mulher e um homem.
A história de Roupenian, caso você não tenha lido, trata de uma universitária chamada Margot que começa a trocar mensagens de texto com Robert, um homem que frequenta o cinema de arte em que ela trabalha como balconista. Eles saem, as coisas não vão muito bem, mas ela acaba na casa dele. Lá, o desejo sexual dela começa a se esvair, mas ela decide transar com ele em vez de enfrentar uma conversa constrangedora para explicar por que não quer mais. Margot vai embora e para de trocar mensagens com Robert – que, alerta de spoiler, não lida bem com a rejeição.
A história apareceu na hora certa – no meio do movimento #MeToo, quando nossa sociedade está consumida por questões de desconforto sexual, má conduta e o padrão tóxico dos roteiros de interações entre homens e mulheres.
"Essa história em particular não trata de abuso ou assédio sexual, não trata de abuso no trabalho ou estupro, mas olha para a incapacidade das pessoas de lerem as outras, a incapacidade de ler os outros sexualmente", disse a editora de ficção da New Yorker, Deborah Treisman, ao HuffPost em conversa por telefone.
O timing feliz, diga-se, não foi por acaso. "Tínhamos [a história na mão] havia algumas semanas e, sim, o assunto é quente", disse Treisman, "então achamos que seria uma boa hora. Não queríamos segurá-la durante meses".
Para pessoas que seguem certos grupos no Twitter (perfis de Livros, mas também perfis Feministas e de Mídias), a história parecia estar em todo lugar, junto com aquela imagem inquietante. Tampouco era sua ubiquidade uma ilusão. "De toda a ficção que publicamos este ano, 'Cat Person' foi de longe a mais lida na internet", disse ao HuffPost Natalie Raabe, diretora de comunicação da revista. "Também é um dos artigos mais lidos do ano, no geral~. Então ela veio na hora certa – mas já houve outras histórias na hora certa antes. Qual é o apelo especial de "Cat Person"?
Por um lado, ela é bastante semelhante a outro formato que costuma viralizar: textos confessionais em primeira pessoa. Vários leitores no Twitter, a propósito, referiram-se ao texto como um artigo ou um ensaio, não como um conto. "Cat Person" se desenrola em uma prosa transparente que não é astuta; é fácil perder-se nela, ver-se enrolado nas neuroses e realidades imaginadas de Margot, assim como nos concentramos nas revelações psicológicas das colunas Modern Love, do The New York Times, e não na estrutura ou no uso de adjetivos. A história de Roupenian é a versão em ficção de "Aconteceu Comigo: Transei Porque Achei que Seria Constrangedor Dizer Não".
A ubiquidade desses ensaios, em uma era ligeiramente anterior à internet, devia muito a considerações econômicas de mídias online, pois ela não exige expertise em reportagem, mas ainda assim atinge a área reptiliana do clicar-e-compartilhar do cérebro. Apesar de Jia Tolentino, também da New Yorker, ter dito adeus ao formato este ano, ele nunca vai nos abandonar. Sempre estaremos interessados em como os outros encontram o amor, se separam, encontram bolas de pelo de gato em suas vaginas (desculpe, isso aconteceu).
Na realidade, "Cat Person" diz respeito a uma necessidade que esses textos pessoais do xoJane também atendem: narrativas sinceras e vulneráveis de experiências de mulheres da vida real. O corpo das mulheres é enquadrado como humilhante, vergonhoso. Aprendemos a esconder a menstruação, fingir orgasmos e aceitar sair com caras só para não magoá-los. É libertador contar o que estamos escondendo, descobrir que as outras mulheres não são modelos ideais de limpeza e gentileza – elas são complicadas, superficiais, equivocadas e às vezes nojentas, como nós.
(Não sei como fazer justiça à conversa que está acontecendo em torno da minha história, mas sou grata. Preciso dar uma caminhada na neve e abraçar meu cachorro, mas, se você tiver me mandado uma mensagem direta, obrigada, e enquanto isso: https://t.co/IjVFkzWGi6)
"Cat Person" mergulhou fundo na consciência de uma mulher, narrando o lado dela em um encontro sexual decepcionante e foi considerado revigorante por muitos leitores. (Que a jovem mulher era uma estudante universitária e que sua experiência fosse familiar para muitas brancas educadas e de vida financeira confortável, provavelmente a maioria das leitoras da New Yorker, só pode ter ajudado a história a fazer sucesso junto ao público-alvo.) Há muitos contos sobre homens fazendo coisas terríveis, escritos por homens. Mas também há muitos contos de mulheres, sobre relacionamentos de mulheres – Lorrie Moore e Mary Gaitskill são apenas dois exemplos clássicos.
Se a história tivesse aparecido há seis meses, teria sido a mesma história, mas não teria havido a mesma compreensão compartilhada de sua ressonância.
Mas, diferentemente de tantos outros contos excelentes sobre namoro, sexo e interioridade feminina, a história de Roupenian – a primeira que ela escreveu para a New Yorker – chegou num momento em que estamos preparados e prontos para falar dela. A combinação do momento #MeToo com os outros apelos de "Cat Person" são uma alquimia perfeita.
"Tenho certeza [de que a resposta] de fato tem algo a ver com a natureza do nosso discurso agora, sobre sexo, sobre consentimento", disse Treisman. "Esse tipo de questão está tanto no noticiário e no ar agora que essa era uma maneira de olhar para ela, de certa maneira longe da esfera política, da esfera dos produtores de Hollywood e assim por diante."
Apesar de, como ela observa, esse tipo de experiência não ser novidade, não se pode negar que estamos falando de todas essas experiências, passadas e presentes, com muita avidez agora. É como se estivéssemos fazendo um curso de experiências sexuais ruins com homens e o semestre estivesse só na metade; a leitura básica terminou, agora estamos todos no mesmo ponto. Isso não significa que todos estejamos de acordo – pelo contrário. O "Twitter do 'Cat Person'" estava dividido em questões básicas (Margot merece simpatia?) – mas todos reconhecemos essa história como uma oportunidade clara para falar de consentimento, comunicação e o prazer sexual da mulher. Se a história tivesse aparecido há seis meses, teria sido a mesma história, mas não teria havido a mesma compreensão compartilhada de sua ressonância.
Por mais triste que seja admitir, grande parte do sucesso viral de "Cat Person" pode ser simplesmente o fato de que um conto nunca tinha realmente viralizado antes nas redes sociais. Inicialmente, a conversa à sua volta era uma metaconversa: não é legal que um conto esteja sendo lido? Por que este conto está sendo lido? Todo mundo está tão empolgado porque nunca leu um conto antes e não sabia como eles podem ser incríveis? Como fazer para que mais contos viralizem no futuro? Nenhum conto pós-"Cat Person" vai ter o mesmo impacto da novidade.
Treisman, por sua parte, parece igualmente surpresa com a popularidade da história – e ela não sabe dizer exatamente como replicar esse sucesso com outras peças de ficção. "Em termos da disseminação nas redes sociais", disse ela, "isso ainda é novidade para mim, pelo menos. Não sei como manipulá-las."
Mas já passamos por isso antes e tivemos essas mesmas conversas -- sobre poesia. Quando "Piada sobre Estupro", de Patricia Lockwood, explodiu no verão de 2013 (a propósito, o poema também atraiu os leitores com sua representação vívida e sem censura da experiência interior de uma mulher a respeito de sua interação com um homem), muitos ficaram maravilhados com a possibilidade de um poema viralizar. O jornal The Guardian disse que o poema "casualmente despertou de novo o interesse de uma geração por poesia". Nos anos seguintes, a poesia continuou ganhando novos leitores, particularmente online. Hoje em dia, um poema que viraliza não é tão notável – isso acontece com bastante frequência. A poesia tornou-se um elemento básico na forma como respondemos e processamos eventos na internet, oferecendo uma perspectiva diferente da dos artigos ou das notícias.
Por que os contos não podem ser assim? Existem puristas artísticos que correm para defender a santidade da literatura de coisas tão grosseiras como "mensagens" ou "relevância política". Discussões sobre qual personagem estava certo, quem foi egoísta ou se Robert foi humilhado por ser gordo enquadrada como tratar a ficção como não-ficção. "É inevitável que alguns leitores vejam 'Cat Person' como uma reflexão sobre questões oportunas, como uma lição, assim como os ensaios pessoais", suspirou Laura Miller, no site Slate. "É fácil deixar-se levar pelo hábito de achar que todo trabalho literário imaginativo tenha de ter uma moral inequívoca."
Mas há uma razão pela qual as pessoas leem a história dessa maneira: ela oferece uma narrativa muito realista de uma quebra de comunicação entre duas pessoas aparentemente reais, sugerindo por que as coisas deram errado. É claro que queremos tirar lições disso, se possível. "Cat Person", embora escrito bem antes do momento #MeToo (e que merece ser lido a despeito dele), oferece um alívio particular e um insight para os leitores tomados por esse momento cultural, assim como um ensaio. Roupenian e Treisman, que enfatizaram a capacidade da história de falar com a nossa consternação atual sobre os ruídos de comunicação entre homens e mulheres, parecem abraçar a relevância política do trabalho.
Isso é exatamente o que torna o conto tão atraente, e o que há muito é um dos pontos fortes da ficção -- especialmente o realismo psicológico.
Em entrevista com Treisman para a The New Yorker, Roupenian explicou que a resignação de Margot com uma transa que ela não queria mais "fala sobre a maneira como a qual muitas mulheres, especialmente as jovens, se movem pelo mundo: evitando irritar os outros, assumindo a responsabilidade pelas emoções alheias, dando extremamente duro para manter felizes todos aqueles à sua volta".
Em entrevista ao The New York Times, ela falou sobre a solidão sentida pelas mulheres que saem com homens, sobre ter um parceiro que não entende sua vulnerabilidade sexual. "É uma dor de muitas mulheres que conheço, especialmente neste último ano, quando todas essas terríveis experiências estão se tornando parte da conversa pública", disse Roupenian. "As mulheres tentam falar sobre essas experiências com seus parceiros, e eles se veem derrotados. É um sentimento de isolamento para ambos."
E, embora tenhamos de lembrar que a história é ficção (não, Margot e Roupenian não são a mesma pessoa) e analisemos a história como um trabalho imaginativo cuidadosamente elaborado, é difícil ver o que há de errado ao discutir isso como uma janela para um problema do mundo real, o que Roupenian faz nessas entrevistas. Isso é exatamente o que torna o conto tão atraente, e o que há muito é um dos pontos fortes da ficção -- especialmente o realismo psicológico.
Isso não quer dizer que a ficção deva ser apenas baseada em arquétipos morais simplistas. Como ressalta Miller, "Cat Person" resiste a julgamentos fáceis de seus personagens. Em vez disso, o conto mostra duas pessoas complexas e imperfeitas. Isso o torna ainda mais valioso como ferramenta educativa. A vida real também é complicada e cheia de humanos complexos e defeituosos, mas a vida real é onde temos de viver.
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