06/05/2014 por Valéria Diez Scarance Fernandes
Recente pesquisa do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) a respeito da tolerância social à violência contra as mulheres provocou ondas de indignação e protestos por todo o país.
A pesquisa foi publicada no dia 27 de março de 2014 noticiando que 65,1% dos entrevistados responderam positivamente à pergunta “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas?”. Na semana seguinte, o IPEA anunciou que havia erro na publicação por inversão de gráficos e o índice correto era de 26%. Para as perguntas “mulher que é agredida e continua com o parceiro gosta de apanhar?” e “se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros” a maioria respondeu positivamente (65% e 58,5% respectivamente).
Sejam 26% ou 65%. Esta semana descortinou-se uma realidade: a sociedade ainda culpa a mulher pela violência sofrida.
Com o advento da Lei Maria da Penha, muitos afirmaram que se tratava de uma lei inconstitucional e discriminatória ao homem. Contudo, os recentes acontecimentos comprovam o já afirmado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADC 19 e ADI 4424, de que a lei é constitucional e necessária. Nos dizeres do relator Marco Aurélio, uma “legislação compensatória a promover a igualdade material sem restringir de maneira desarrazoada o direito das pessoas pertencentes ao gênero masculino”. Homens e mulheres são iguais em direitos, mas desiguais na vida e na efetividade desses direitos.
Adota-se como pressuposto para a Lei Maria da Penha que se trate de uma violência de gênero (art. 5º), praticada nos âmbitos da unidade doméstica, família ou relação afetiva (art. 5º, I a III). As formas de violência previstas são: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral (art. 7º, I a V, da Lei).
Por que o legislador adotou esse critério? O que é gênero?
Gênero e sexo não se confundem. O conceito de gênero envolve uma construção social da mulher e do homem, enquanto o sexo é biológico. Pessoas nascem homens ou mulheres. Por outro lado, agem como mulheres e homens, em razão de padrões de comportamento.
Aprende-se ao longo da vida que a mulher deve cumprir o papel social de boa esposa e mãe, ser recatada, vestir-se adequadamente, respeitar o marido e ser fiel. Por outro lado, o homem deve ser sedutor, forte e viril. Ainda hoje, essas ideias estão impregnadas no modo de agir e pensar das pessoas.
Uma das maiores especialistas em gênero no país, Marlene Neves Strey em seu artigo Violência de Gênero: uma questão complexa e interminável, refere estudos que apontam essas diferenças, pois “aos homens é permitido ter alguma relação extramatrimonial, enquanto que as mulheres devem ser fiéis” e muitos homens empregavam “violência quando a mulher havia feito alguma coisa para merecer isso” (in: Violência, Gênero e Políticas Públicas. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2004, p. 40).
Na Espanha, a Lei de Proteção Integral contra a Violência de Gênero nº 01/2004 preceitua que a violência de gênero é “uma violência que é dirigida às mulheres pelo fato de sê-las, por serem consideradas, por seus agressores, carentes de direitos mínimos de liberdade, respeito e capacidade de decisão” (Exposição de Motivos da Lei de Medidas de Proteção Integral contra a Violência de Gênero na Espanha, grifo nosso)
Em poucas palavras, poder-se-ia dizer que a violência de gênero ocorre porque o agressor é homem e a vítima mulher.
Sob uma abordagem multidisciplinar, o conceito de gênero envolve outros aspectos. Na tese de doutorado “Lei Maria da Penha: o Processo Penal no caminho da efetividade”, salientamos os elementos que integram o conceito de gênero:
a) relacional: gênero refere-se ao modo como homens e mulheres estabelecem relações;
b) assimetria: há uma relação de poder desigual entre os envolvidos;
c) dominação e submissão: como consequência da disparidade de poderes, existe a dominação do homem e a submissão da mulher;
d) naturalização da desigualdade e (transgeracionalidade, terminologia usada por NARVAZ e KOLLER): as diferenças entre homens e mulheres são incorporadas pela sociedade como se decorressem da diferença de sexos, bem como são repassadas nas gerações família” (FERNANDES, Valeria Diez Scarance. Lei Maria da Penha: o Processo Penal no Caminho da Efetividade. Tese (Doutorado). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Direito, 2013, p. 96-97).
Dentre esses, dois aspectos merecem especial destaque: a dominação e a naturalização. Esses aspectos - dominação e naturalização da violência - ajudam a entender a razão pela qual, ainda hoje, afirma-se que a mulher causa a violência.
Nenhum homem agride ou humilha a mulher no primeiro encontro. A dominação do homem se estabelece aos poucos. Inicialmente há a conquista e sedução. Depois, sob o manto do cuidado, tem início o controle, o isolamento da mulher dos amigos e familiares. Seguem-se ofensas, rebaixamento moral e agressão física. Estabelecem-se regras: chegar cedo, não fazer barulho, não usar roupas provocantes, não falar com outros homens, cozinhar e cuidar dos filhos, todas “para o bem da mulher e família”. O descumprimento dessas regras naturalizadas na relação justifica para o homem o ato violento e faz com que a vítima culpada pela violência.
As mulheres não persistem na relação porque “gostam de apanhar” como lamentavelmente se afirma. A violência ocorre ante a impossibilidade de a vítima reagir pela forma como foi dominada, pelos repetidos atos de violência e pelo ciclo da violência (aspectos que serão abordados oportunamente).
Trata-se de uma vulnerabilidade na relação privada, com aquele homem, e não de uma vulnerabilidade pública. O paradigmático processo da atriz Luana Piovani é um bom exemplo.
Inicialmente, decidiu-se pela inaplicabilidade da Lei Maria da Penha porque a atriz não seria hipossuficiente ou vulnerável. No julgamento do recurso especial, em 03 de abril, com a relatoria da Ministra Laurita Vaz, firmou-se o importantíssimo entendimento de que a mulher é vulnerável “em âmbito privado” e a hipossuficiência pressuposto de validade da lei.
A violência é responsabilidade única de quem a pratica e decorre de fatores internos (padrão comportamental) e não de um fator externo (como bebidas ou roupa da vítima). Culpar as roupas ou a bebida é inocentar o agressor e perpetuar a violência.
Ao longo deste ano, publicaremos artigos com o título “Conhecendo a Lei Maria da Penha”, pois entendemos que o conhecimento é a principal forma de enfrentamento à violência contra a mulher.
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