02/07/2014 por Valéria Diez Scarance Fernandes
A Lei Maria da Penha espelha a evolução social, histórica e legislativa dos direitos da mulher em nosso país. Sua interpretação deve ter em conta a peculiar situação da mulher vítima de violência, sob enfoque multidisciplinar. Esse é o critério estabelecido pelo legislador (art. 4º). Não foi concebida para ser interpretada segundo “pré-conceitos” ou estereótipos.
Não raras vezes, contudo, nega-se a gravidade da violência, como se a retratação da vítima ou a reconciliação do casal resolvesse a questão. Fala-se em “restabelecer a paz” familiar ou desnecessidade de intervenção estatal.
Se a reconciliação resolve o problema, por que motivo as mulheres continuam a morrer no Brasil?
Conforme o Mapa da Violência de 2012, foram assassinadas no Brasil 92.000 mulheres entre 1980 e 2010. Nesse período, houve elevação de 230% do índice de mortes. Entre 2001 a 2011, morreram mais de 48.000 mulheres, como indica o Mapa da Violência de 2013.
Para se aplicar a Lei Maria da Penha de modo efetivo e evitar mortes é necessário transcender o Direito e incorporar conceitos de outros áreas, capazes de explicar os motivos do silêncio da vítima. O risco de morte é sempre presente e, embora a literatura indique sinais de “alerta”, não há como se antever o feminicídio.
Há duas realidades incontestáveis: de um lado a possibilidade de feminicídio e de outro a postura reticente da vítima, que ocorre na maioria dos casos.
Um primeiro aspecto a ser salientado é o de que a retratação é um fenômeno mundial. Não só as mulheres brasileiras se retratam, mas também as africanas, asiáticas, inglesas e americanas. A retratação não decorre de cultura ou origem, mas de outros fatores que escapam ao âmbito jurídico.
Vários fatores conduzem ao silêncio da mulher: vergonha da exposição da vida privada, crença na mudança do parceiro (na fase de lua de mel), inversão da culpa, revitimização e medo de reviver o trauma.
A crença da mudança do parceiro normalmente ocorre na fase da “lua de mel” do ciclo da violência. Esse ciclo foi desenvolvido por Lenore Walker, americana que entrevistou 1500 mulheres vítimas e descobriu que a violência ocorre de uma forma cíclica, em fases que se repetem continuamente. Inicialmente, foram apontadas quatro fases, mas a doutrina atual menciona três fases: tensão, explosão e lua de mel.
Na primeira fase, o homem demonstra irritabilidade e comportamento instável, mas a vítima acredita que conseguirá controlá-lo com sua postura obediente e compreensiva. Na segunda fase, o homem perde o controle e pratica violência. É o momento dos socos, puxões de cabelo, chutes, estupro e outros atos de agressão. A vítima se sente impotente em controlar o parceiro. Na terceira fase, conhecida como “lua de mel”, há a reconciliação do casal. O agressor muda seu comportamento. Estudiosos dizem que não se trata de um “fingimento”, mas de uma mudança real e temporária. Torna-se atencioso, respeitoso, abandona álcool e drogas. Mas a transformação é passageira, pois sem a modificação de padrões internos o agressor voltará a praticar violência com intensidade crescente.
Normalmente, a vítima retorna ao silêncio e muda seu depoimento na fase de “lua de mel”, pois acredita na mudança do parceiro. A frase “dessa vez, ele aprendeu a lição” reflete a esperança da vítima. Marie-France Hirigoyen bem salienta que, em regra, a vítima se retrata neste momento:
“Por lo general, retira la denuncia en este momento. Mientras que el miedo que siente durante el período agresivo podría darle ganas de acabar con esa situación, el comportamiento de su compañero, durante la fase contrición, la incita a quedarse. De manera que el ciclo de violencia puede volver a empezar.” (Hirigoyen, Marie-France. Mujeres maltratadas: los mecanismos en la violencia en la pareja. 1. ed. 1. reimp. Buenos Aires: Paidós, 2008, p. 52).
Além disso, a repetição do ciclo conduz à impossibilidade de reação, o que se denomina de Síndrome do Desamparo Aprendido. Experiências com animais revelaram que a repetição de atos de violência pode acionar no cérebro um mecanismo inibidor da reação. Descobriu-se que com as mulheres vítimas de violência acontece o mesmo fenômeno: a repetição da violência inibe a reação. Por isso as vítimas de feminicídio morrem sem esboçar reação, inertes e indefesas (Os experimentos realizados por H. Laborit com ratas e Seligman com cachorros, bem como a teoria learned helplessness - impotência aprendida - são referidos por Marie-France Hirigoyen, Op. cit, p. 80).
Além da inversão da culpa, mencionada no artigo anterior, um dos fatores que leva ao silêncio é a revitimização. Fala-se em vitimização primária (causada pelo agente) e secundária (pelas autoridades).
Em regra, o autor de violência tem uma conduta social ilibada. Ao longo da vida incorporou um padrão de relacionamento em que o homem exerce poder sobre a mulher e tem o direito de repreendê-la. Por esse motivo, em audiências, muitas vezes o agressor justifica sua conduta com base em um “deslize” da vítima.
Socialmente, o agressor aparece como um bom cidadão. A vítima, em razão do sofrimento, pode adotar postura emotiva, reacional ou demonstrar ênfase em suas observações. Quando procura ajuda, pode ser mal compreendida pelas autoridades e a forma como é atendida é fundamental para que mantenha sua versão. Nunca se deve questionar a causa da violência “na vítima” (sua conduta, roupas, postura), mas sim no agente. Perguntar “o que a senhora fez?” é uma inadmissível inversão de culpa.
Não só o descaso e a falta de compreensão de autoridades conduzem ao silêncio. Também a vitimização por parte dos filhos, amigos e parentes, que usam fatores externos para negar a violência ou justificá-la.
É certo que a vítima retoma o relacionamento com o parceiro em razão do sentimento dúbio de amor e ódio, mas também pela falta de compreensão ou fragilidade. Contudo, essa reconciliação não significa em absoluto ausência de risco de morte. À pergunta “por que a vítima retoma o relacionamento com o parceiro” podemos responder: porque desconhece o risco de morte e não consegue reagir. Por isso, deve ser ouvida, acolhida e encaminhada. Ainda que esteja presa às amarras da violência, a informação pode surgir para a vítima como um sonho de liberdade.
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