Publicado em Sociedade por Redação em 16 de outubro de 2014
Valéria Dias / Agência USP de Notícias
A análise das inscrições e contratos de trabalho registrados em livro — em virtude do Código de Posturas Municipais sobre Criados e Amas de Leite, do ano de 1886, da cidade de São Paulo —, ajudou a historiadora Lorena Feres da Silva Telles a entender as relações mediadas pelo trabalho de mulheres negras escravas, libertas e descendentes livres, no final do século 19, que exerciam a função de domésticas. Essa análise mostrou tanto o paternalismo e a exploração realizada pelos patrões, como também as atitudes e ações de muitas dessas mulheres, que recusavam o tratamento que recebiam e iam à luta em busca de melhores condições de trabalho e salários.
De acordo com Lorena, em 1886, entrou em vigor o Código de Posturas Municipais sobre Criados e Amas de Leite. “Os contratos eram registrados na polícia e anotados a mão pelo escrivão. Essa lei criou um modelo formal de contrato de trabalho, constando o valor e a data de pagamento do salário, a função a ser exercida. Os patrões declaravam às vezes onde a empregada dormia e com quem morava, os horários de chegada e saída. No livro de inscritos eram registrados o nome completo, a idade, a filiação, a naturalidade e traços físicos, além de outras observações dos patrões”, explica.
“Leis semelhantes existiram em várias outros locais como Recife, Salvador, Rio de Janeiro e cidades do Rio Grande do Sul”, conta a historiadora. Ela lembra que o tráfico de escravos havia sido proibido em 1850 e que, em 1871, entrou em vigor a Lei do Ventre Livre. A Lei de 1886 tinha a intenção de regulamentar o trabalho livre doméstico, nos anos finais da vigência da escravidão. Segundo Lorena, havia poucos escravos na cidade — a maioria morava e trabalhava em fazendas do interior — ao passo que a mão de obra doméstica era essencialmente formada por mulheres negras, livres e libertas. Ao mesmo tempo, a população somente crescia, aumentando também a demanda por trabalhadores domésticos.
A lei buscava regular serviços domésticos internos e externos como engomadeira, quitandeira, ama de leite, cozinheira, faxineira, lavadeira e arrumadeira. Para os homens, os serviços eram hortelão (cuidador de hortas), jardineiro, ou ainda cozinheiros em hotéis, carroceiros, etc. “Em muitas casas abastadas encontramos a preferência por criadas brancas nas ocupações de maior proximidade com a família, como amas de leite e pajens de crianças, sinais da política imigratória, e das práticas de branqueamento e da europeização dos costumes”, aponta Lorena.
Ao analisar os registros de 1886, a pesquisadora encontrou 1001 inscritos, sendo que cerca de 50% eram mulheres negras, nascidas livres ou egressas da condição de escravidão para outra condição também servil: a de empregadas domésticas. Entre as inscrições há também brasileiras brancas (os), brasileiros negros, africanas (os), imigrantes portugueses, italianos e alemães, entre outras nacionalidades. A análise do estudo concentrou-se nas trabalhadoras negras.
Liberdade de escolha dentro de limites
Segundo Lorena, apesar de a população trabalhadora em São Paulo ser formada por mulheres e homens livres, as relações de trabalho e as práticas dos patrões eram marcadamente escravistas. Porém, a liberdade possibilitou que muitas dessas mulheres barganhassem um salário melhor, enquanto outras abandonavam seus empregos para trabalhar em outras casas sem avisar os patrões. Outras formavam família.
A historiadora encontrou ainda indícios de atitudes paternalistas: “Duas libertas continuaram morando com o patrão mesmo depois de livres. Isso pode ter ocorrido por diversas razões, como a dificuldade em sobreviver com os salários extremamente baixos e a falta de conhecidos ou parentes na cidade”, aponta. A maioria dos salários variava entre 10 e 20 mil reis, valor insuficiente para custear o aluguel de um quarto no centro. Já em outros casos, os salários sequer eram pagos.
Segundo Lorena, essas mulheres experimentaram as liberdades possíveis: negociavam com seus patrões, formavam famílias, buscavam melhores salários, mas também sofriam agressões e assédios. “O fato mais interessante desses contratos é que eles mostram como essas mulheres agiam e atuavam naquela sociedade, às vésperas da Abolição, em que as condições de trabalho eram muito precárias”, finaliza.
A dissertação de mestrado Libertas entre sobrados: contratos de trabalho doméstico em São Paulo na derrocada da escravidão foi apresentada em 2011 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP sob a orientação da professora Maria Odila Leite da Silva Dias. No último mês de setembro, a pesquisa foi lançada como livro sob o título: Libertas entre sobrados – Mulheres Negras e Trabalho Doméstico em São Paulo (1880-1920) pela Alameda Casa Editorial / Fapesp.
Mais informações: email lorena.telles@usp.br, com a pesquisadora Lorena Feres da Silva Telles
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