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quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Ressentimentos

Temos de digerir a frustração, apertar o botão de reset e começar de novo. Como amantes preteridos

IVAN MARTINS
22/10/2014

Woody Allen, o diretor de cinema americano, diz que se lembra de todas as humilhações que sofreu na vida desde os oito anos de idade. Acho isso um exagero de humorista. Eu mesmo não me lembro de nenhuma humilhação antes dos nove anos. Ao menos, não em detalhes.

Com humor ou sem humor, é inevitável lidar com a memória das nossas derrotas e com os sentimentos amargos que provocam. Sobretudo o ressentimento. O dicionário Aurélio o define de forma bonita, como ato de ressentir. Sentir novamente. Numa acepção mais comum, a palavra equivale a mostrar-se ofendido, magoar-se, melindrar-se.

No Brasil, a gente costuma usar como insulto. Ressentido é quase um sinônimo de complexado, derrotado, infeliz. Como se todos não fôssemos ressentidos em alguma medida.

Conheço gente que exala o sentimento no hálito e na transpiração, como uma espécie de marca pessoal. Outros o escondem com habilidade. Mas isso são superficialidades. Exceto, talvez, pelo Dalai Lama e pelo papa Francisco, todos se ressentem de alguém e de alguma coisa. Basta prestar atenção, que o sentimento aparece.

Costumam associar ressentimento a timidez e dificuldade com confronto. Não é tão simples. Há gente exaltada e agressiva que navega num mar de ressentimento. Ser bom de briga não evita que o sujeito se sinta eternamente injustiçado ou preterido. Às vezes, até contribui. A capacidade de perdoar (ou perdoar-se) e começar de novo determina o grau de ressentimento, não o caráter. É a existência de um botão de reset. Alguns não têm.

Mais difícil que lidar com o ressentimento dos outros, é lidar com o nosso. Ele consome. Se acumula. Provoca sobressaltos e descontroles. A pessoa está tranquila, quase no sono, quando se lembra de um desaforo de infância ou de adolescência. Imediatamente o sangue ferve, o corpo se enche de uma energia inútil e nociva, a mente dispara, elabora contestações e valentias inúteis, numa sequência vertiginosa de versões. Adeus, sono. Adeus, descanso.

Nas relações amorosas o ressentimento é um desastre.

Atua como a moeda de um sistema de acerto de contas permanente. Você me fez sentir mal, eu não esqueço, arrumo um jeito enviesado de cobrar ou dar o troco. Ou guardo, como fatura a apresentar no futuro. Em meio ao desentendimento dominical sobre a programação da TV, vem a conta inesperada: “Você não se importa com o que penso. No dia do aniversário da sua mãe, não me deixou falar. Toda vez que eu tentava dizer alguma coisa, você interrompia. Na frente de todo mundo”. Ups.

Essa é a versão light do ressentimento. A vida real tende a ser pior.

A formação de casais e mesmo as amizades são tocadas por esse sentimento. Diante de um gesto percebido como desatencioso, muitos se retraem e se afastam. Parece infantil, e talvez seja. Nossos egos grandalhões têm muito de criança. Melindram-se com facilidade. Detestam ser preteridos e magoados. Às vezes, é uma reação exagerada. Outras vezes, pode ser uma conta racional. Quem falta com a atenção uma vez pode faltar de novo; quem magoa uma vez pode repetir a dose. Nossos mecanismos de defesa funcionam por alguma razão. Se o ressentimento se dirige sempre à mesma pessoa, talvez seja o caso de dar ouvidos a ele.

Este domingo teremos eleição. Na segunda-feira haverá um monte de ressentimento nas ruas. Azul ou vermelho. Gostaria de ter uma fórmula simples para lidar com essa ressaca, mas não existe. Teremos de digerir a frustração, apertar o botão de reset e começar de novo. Como amantes preteridos.

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