21/10/2014 – por Daniela Abade
“Não posso ser atacada por você – a única pessoa de quem eu mereço proteção”
A frase acima foi a última escrita por Reeva Steenkamp numa mensagem enviada por whatsapp para seu namorado e algoz, o atleta sul-africano Oscar Pistorius. Ela é parte de um longo texto em que Reeva tentava (novamente) uma reconciliação. A mensagem foi enviada no dia 8 de fevereiro de 2013. Reeva foi assassinada na madrugada do dia 14 de fevereiro do mesmo ano. Essa e várias outras mensagens foram apagadas tanto do celular de Pistorius, quanto do celular de Reeva, aparelho que, coincidentemente, estava em posse de Pistorius. Obviamente não há como provar que ele também apagou as mensagens do aparelho alheio – só especular que ele era o maior interessado em vê-las apagadas. A mensagem mais longa e assustadora, no entanto, foi enviada pouco antes, no dia 27 de janeiro de 2013. Foi a penúltima comunicação de Reeva com Pistorius pelo aplicativo. Traduzi a mensagem na íntegra.
“Eu não estou 100% certa do porquê de eu estar aqui sentada digitando essa mensagem para você, mas talvez isso diga muito do que está acontecendo por aqui. Hoje era a festa de noivado de um dos meus melhores amigos, eu queria ficar mais tempo, eu estava me divertindo, mas tudo acabou agora. Desde que você voltou para Cidade do Cabo você vem implicando comigo incessantemente. Eu entendo que você esteja doente, mas é nojento. Ontem não foi legal para nenhum de nós dois, mas nós conseguimos arrumar uma forma de superar isso e nos comunicamos bem o suficiente para mostrar que o carinho que sentimos um pelo outro é maior que todo o drama que nos atacou. Eu não estava flertando com ninguém hoje. Eu fico enojada que você tenha insinuado isso, que você tenha feito a maior cena na mesa e nos fez ir embora mais cedo. Eu estou terrivelmente decepcionada em como o dia terminou e em como você me deixou. A gente está vivendo uma relação com dois pesos e duas medidas, onde você pode ficar bravo com a forma em que eu lido com as coisas – quando você pode ser muito rápido para ficar frio ou se descontrolar ao se sentir infeliz. A cada cinco segundos eu ouço como foi seu namoro com outra garota. Você realmente namorou um monte de gente, mas fica possesso quando eu menciono UMA história antiga e engraçada com um cara que eu namorei sério. Eu faço tudo para deixar você feliz e para que você não fique nervoso. Você faz tudo para ter ataques de fúria em frente às pessoas. Você está triste há dois dias agora. Eu estou tão triste que deixei a festa do Darren mais cedo. TÃO triste. Eu não posso ter esse dia de volta. Eu fico com medo às vezes da forma como você briga comigo ou como pode reagir comigo. Eu estou feliz com você 90% do tempo, mas eu não sou só mais uma garota que que você conhece e que pode acabar com sua energia. Eu sou a garota que deixou ser levada por você mesmo quando estava apavorada. Eu sou a garota que se apaixonou por você e queria dizer isso nesse final de semana. Mas eu também sou a garota que se esquiva quando você está num humor de merda. Quando eu sinto que você pensa que já me tem, então nem tenta se esforçar. Eu tomei uma bronca e você me disse que meus sotaques e vozes eram chatos. Eu toquei seu pescoço para mostrar que eu me importo e você me pediu para parar. Pare de mascar chiclete. Não faça isso, não faça aquilo. Seus patrocínios, sua reputação, sua impressões sobre pessoas inocentes tomaram uma proporção exagerada e você f* o dia para mim. Eu sinto muito se você verdadeiramente achou que eu estava dando em cima do marido da minha amiga Sam e eu sinto muito se você pensa tão pouco sobre mim. De fora parece que nós estamos em uma luta – e talvez nos estejamos. Eu só amo e quero ser amada. Ser feliz e fazer alguém TÃO feliz. Talvez a gente não consiga fazer isso um pelo outro. Porque agora eu certamente sei que você não está feliz e eu não estou feliz, estou triste”.
Todas essas mensagens foram recuperadas posteriormente pela promotoria, durante a investigação do assassinato, mas não foram aceitas pela juíza do caso, Thokosile Masipa, que alegou que eram provas circunstanciais, assim como o testemunho dos vizinhos que ouviram uma discussão barulhenta e gritos “assustadores” de uma mulher antes dos tiros. Masipa, no entanto, aceitou a defesa de Pistorius, que disse que ele reagiu com medo de um suposto invasor. Perceba que a juíza também agiu com dois pesos e duas medidas, como Reeva mencionou na mensagem acima.
Não há qualquer evidência material de que Pistorius reagiu com medo. É tudo cirscunstancial (e duvidoso). O atleta alega que acordou, ouviu um barulho no banheiro, pegou uma arma e deu quatro tiros na porta do banheiro. Supondo que a versão de Pistorius seja verdadeira que a discussão não existiu, que os gritos femininos sejam ficção: Pistorius, mesmo morando com a namorada, a primeira coisa em que pensou ao ouvir um barulho no banheiro foi em um invasor. Não perguntou quem era, não chamou pela namorada, não ligou para polícia, nem ao menos procurou por Reeva para protegê-la antes de se certificar que havia um intruso em casa. A suposta reação de medo de Pistorius foi pegar uma arma e dar quatro tiros em uma porta, sem perguntar nada, sem se certificar de nada. E, segundo a defesa, sem intenção de matar. A juíza aceitou essa versão. Quatro tiros sem intenção de matar. O medo de Pistorius foi aceito. O medo de Reeva, esquecido. Mais que medo: ela estava apavorada.
Pistorius foi sentenciado a cinco anos de prisão por “homicídio negligente”, sem intenção de matar. O mais ultrajante nessa sentença não é a evidente proteção ao acusado: é que esse foi um caso que ganhou holofotes, foi noticiado no mundo inteiro. O caso de Reeva era a esperança de uma pequena mudança no sistema de justiça sul-africano, que continuamente vem absolvendo homens e permitindo uma violência sem precedentes contra a mulher. A cada hora oito mulheres são assassinadas na África do Sul. Em agosto de 2014 o site “blow the whistle” (assopre o apito) recebeu mais de 74 mil denúncias de estupros e ataques sexuais no país. Vejam bem: 74 mil em um só mês. Dessas 74 mil mulheres, pelo menos 5700 morreram de acordo com as estatísticas. Em 14 de fevereiro de 2013 Reeva foi uma dessas milhares. Hoje, em 21 de outubro de 2014, o sistema de justiça da África do Sul se certificou que ela fosse só mais uma. Reeva foi só mais uma.
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