02/06/2014 por Christiano Cassetari
A questão da parentalidade socioafetiva é amplamente debatida entre doutrinadores e especialistas em Direito de Família, já que muito se fala nessa forma de parentalidade, mas pouco se explora quanto aos efeitos por ela gerados. Essa modalidade de parentesco e de filiação atualmente é muito bem aceita em nossa jurisprudência, tanto do STJ quanto dos tribunais estaduais, após um trabalho hercúleo da doutrina brasileira, que, desde o fim da década de 70, já se manifestava no sentido de que se reconhecesse a importância do afeto nas relações familiares. Aliás, cumpre ressaltar que em certos casos há, inclusive, uma prevalência do afeto ao vínculo biológico. Como o afeto não é fruto da biologia, verifica-se que os seus laços derivam da convivência, e não do sangue. O magistral Zeno Veloso afirmou, em uma de suas obras, que a paternidade reside antes no serviço e no amor do que na procriação. Isso se torna um desafio aos juristas que lidam com o Direito de Família, já que será necessário enxergar as pessoas em toda a sua dimensão ontológica, respeitando o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. A experiência jusriprudencial sobre o tema, nos mostrou ser necessário realizar um estudo minucioso sobre os efeitos jurídicos dessa forma de parentalidade, haja vista que, atualmente, o que se percebe é que os julgados que a reconhecem não explicam quais serão as consequências jurídicas desse reconhecimento, e acreditamos ser imperioso construir uma teoria geral sobre o tema. Assim, é necessário impor a distinção entre origem biológica e paternidade/maternidade, pois a filiação não é um determinismo biológico, ainda que seja da natureza humana o impulso à procriação. Na maioria dos casos, a filiação deriva-se da relação biológica. Todavia, ela emerge de uma construção cultural e afetiva permanente, que se faz na convivência e na responsabilidade. São muitas as dúvidas existentes quanto a real extensão dos efeitos jurídicos da parentalidade socioafetiva, já que na jurisprudência há inúmeros julgados que reconhecem a sua existência, mas nenhum que elenque as consequências de se estabelecer tal modalidade de parentalidade. Entendemos ser necessário buscarmos as respostas de algumas perguntas, tais como sobre o conceito contemporâneo de parentalidade socioafetiva e como se dá os limites para a sua caracterização? Quais os efeitos da posse de estado de filho, da adoção de fato, dos filhos havidos fora do casamento, na consubstanciação dessa parentalidade? Seria ela um direito ou um dever de pais e filhos, e quem teria legitimidade para pleitear o seu reconhecimento? O reconhecimento dessa parentalidade pode ser voluntário ou somente judicial? Quando judicial qual ação deve ser proposta? Seria por ação autônoma ou por decisão incidental em processo em curso? Pode esse reconhecimento ser feito post mortem? Qual é a extensão dessa filiação socioafetiva com outros parentes, e se disso irá decorrer direito aos alimentos, sucessório, de visita/convivência, de guarda e até mesmo previdenciário? Seria essa parentalidade um abrandamento da regra pater is est quem justae nuptiae demonstrant?
Estes são os motivos que nos fizeram abordar esse tema em nossa tese de doutorado na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), que acaba de ser publicada pela Editora Atlas com o nome “Multiparentalidade e Parentalidade Socioafetiva: Efeitos Jurídicos”, pois ao concluirmos nosso estudo percebemos que é possível a coexistência da filiação socioafetiva com a biológica, onde uma pessoa poderia ter dois pais e/ou duas mães. Trata-se da multiparentalidade, que acreditamos ser possível e viável a sua existência, desde que fixadas certas premissas, já que entendemos que ela não pode, por exemplo, ser utilizada com finalidade patrimonial, pois a beleza do instituto está em dar a alguém a possibilidade de conviver com três ou mais pais e mães ao longo da sua vida, recebendo deles todo o carinho e afeto indispensável para o desenvolvimento saudável do ser humano.
Constatamos que o fundamento da multiparentalidade é a igualdade das parentalidades biológica e socioafetiva, pois entre elas não há vínculo hierárquico e uma não se sobrepõe a outra, podendo elas coexistirem, harmoniosamente, sem problema algum.
Vários são os problemas que podem ocorrer com a multiparentalidade, que solucionamos em nosso trabalho com as normas existentes em nossa sistema, tais como quem irá autorizar a emancipação e o casamento de filhos menores, quem aprovará o pacto antenupcial do menor, quem representará os absolutamente incapazes e quem assistirá os relativamente, quem irá exercer o usufruto dos pais com relação aos bens dos filhos enquanto menores, quando os filhos menores serão postos em tutela, como será dividida a pensão alimentícia entre os vários pais e se o filho é obrigado a pagar a todos eles, como será feita a suspensão do poder familiar, quem dos vários pais será, também, responsável, pela reparação civil, como será contada a prescrição entre pais e filhos e seus ascendentes e a quem será atribuída a curadoria do ausente.
Porém, é fundamental que o reconhecimento da parentalidade socioafetiva seja averbado no registro civil, para que ela seja oponível erga omnes, e se inclua o pai ou mãe e os novos avós e se modifique, ou não, o nome do filho.
Assim sendo, constamos que é necessário fazer uma releitura crítica em torno do instituto da filiação socioafetiva, analisando suas consequências jurídicas e adequando-a à realidade social em que vivemos, para que se alcance uma sistematização de suas normas na perspectiva dos princípios constitucionais e dos informadores do Código Civil vigente, da jurisprudência, da doutrina nacional e estrangeira e dos enunciados aprovados pelo Conselho da Justiça Federal, pois existem inúmeros aspectos da parentalidade socioafetiva, às vezes desconhecidos e às vezes mal interpretados, não só no aspecto teórico, mas também no prático, que deve ser sistematizado e adequado à nova realidade social.
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