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sexta-feira, 9 de outubro de 2015

"Filhas da Índia brasileiras

02/10/2015 por Valéria Diez Scarance Fernandes

Um estupro a cada 12 segundos
527.000 estupros por ano.

O documentário “Filha da Índia”, lançado no Brasil como parte da campanha “Quanto custa a violência sexual contra as meninas?”, reflete a face mais cruel do estupro: culpa-se a vítima e sempre a vítima.

No documentário, há um relato da história dos agressores, da vítima e do crime coletivo praticado contra a estudante Jyoti Singh, atacada dentro de um ônibus, estuprada, agredida e vilipendiada com um chave de fenda, até que seus intestinos fossem arrancados para fora. Apesar disso, o aspecto mais estarrecedor é a frieza discriminatória e sexista do réu e dos advogados. A todo tempo, justifica-se o ataque coletivo porque a vítima estava na rua, no início da noite, com um homem que não era seu parente. Nas exatas palavras do advogado dos réus, no momento em que Jyoti saiu à noite acompanhada de um amigo, “tornou-se mulher”.

Ivan Martins, em “Estupradores não sentem remorso”, ressalta esse julgamento moral no filme:

“O mais chocante, o que realmente parece inacreditável, é a sequência de depoimentos masculinos atribuindo a responsabilidade pelo crime à própria vítima. Jyoti voltava do cinema com um amigo, às 9 horas da noite, quando ambos foram atacados por seis homens no interior de um ônibus em Nova Délhi, capital do país” (Disponível em: http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/ivan-martins/noticia/2015/09/estupradores-nao-sentemremorso.html>. Acesso em 22 set. 2015).

Mas em outros recantos do mundo também habita a hermenêutica da culpa.

Em 1999, na Itália, a Suprema Corte cassou a condenação de estupro de  “Carmine”, de 45 anos, instrutor de autoescola que estuprou sua aluna “Rosa”, de 18 anos. A Suprema Corte decidiu que a vítima havia concordado com o ato, porque sua calça jeans era tão apertada que não poderia ter sido removida sem consentimento (Disponível em: <http://news.bbc.co.uk/2/hi/europe/277263.stm. Acesso em: 22 set. 2015). Em 2010, na Austrália, também houve a absolvição em processo de estupro porque a vítima usava calça skinny. Em nota, um membro do júri afirmou: “Eu duvido que esse tipo de jeans possa ser removido sem qualquer tipo de colaboração.” (Disponível em: http://www.dailymail.co.uk/news/article-1270113/Youre-guilty-rape-Those-skinny-jeans-tight-remove-jury-rules.html. Acesso em: 22 set. 2015).

A distância física que nos separa dos crimes cometidos contra Jyoti e Rosa não é tão grande quando se trata de julgamento moral.  No dia a dia, a todo momento, ocorrem crimes sexuais contra nossas mulheres. E esses crimes caminham de mãos dadas com o julgamento da moral da vítima.

Dentre os crimes mais comuns, têm ocorrido estupros em três contextos:

estupro familiar : praticado por pais e padrastos contra filhas e enteadas;

estupro marital: no âmbito da relação afetiva, posto que não existe, ao menos teoricamente, o “debito conjugal”.

estupro “universitário”: cometido por colegas de faculdade das vítimas, em contextos de festas, reuniões ou outras situações.

Esses estupros têm um núcleo comum: são praticados por conhecidos ou pessoas de confiança de vítima, o que dificulta o rompimento do silêncio.

A Nota Técnica do IPEA divulgada em março de 2014: “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde (visão preliminar)” revela que ocorrem 527.000 estupros por ano – apenas 10% noticiados à polícia. As vítimas são jovens, 89% do sexo feminino, 70% até 17 anos e 99,6 % dos agressores são homens, 79% a 65% dos agressores são conhecidos, com variações conforme a faixa etária da vítima.

Além do risco de doenças, o trauma dificulta a produção da prova. Os relatos podem ser esparsos, com imprecisões, principalmente quando as vítimas são muito jovens. Evani Zambon Marques da Silva e Lídia Rosalina Folgueira Castro salientam fatores que reforçam a validade dos depoimentos de crianças:

“Memória: esquecer ou errar detalhes periféricos. Restrição progressiva dos detalhes da história. Lembranças de posturas. Não respeitar a cronologia”

“Sexualidade: inibida ou expandida, em desacordo com a idade da pessoa. Agressividade sexual (na criança pré-púbere)”

“Estresse: existência de sintomas pós-traumáticos logo após a revelação. Reativação depois de cada entrevista técnica”(Psicologia Judiciária para Concursos da Magistratura. São Paulo: Edpro, 2011, p. 103).

O estupro contra as crianças ocorre de forma continuada e, em regra, sem conjunção carnal. Refere Christiane Sanderson que:

“o pedófilo compulsivo pode ter um interesse em fotografar crianças, e é comum que prefira um envolvimento sexual limitado com elas. O foco pode ser no toque, na exploração da genitália da criança, em masturbação mútua ou em contato genital oral. O coito sexual completo ou a sodomia são menos usuais” (Sanderson Christiane. Abuso sexual em crianças. São Paulo: M. Books, 2008. p. 56).

No âmbito das Universidades, o fato de as vítimas terem consumido álcool ou ingressado em um local com rapazes atua como inversão da culpa, como se tivessem “provocado” os estupradores.

O estupro marital, embora muito comum e precedente em metade dos feminicídios, raramente é noticiado. A distância entre dizer “há estupro entre marido e mulher” e efetivamente reconhecer e reprimir o crime é tão grande quanto a distância que separa nosso país da Índia.

A verdade é que entre as “filhas da Índia” e as “filhas do Brasil” há  um relampejar de olhos quando se trata de culpar a vítima. Ainda que aqui não se levante ostensivamente a bandeira da honra das mulheres, ela continua lá, escondida e flamejante, com a mensagem de que a vítima causou o estupro. É hora de entender que as filhas da Índia e as filhas do Brasil poderiam ser nossas filhas e nossas irmãs. É hora de julgar quem merece ser julgado: o estuprador nosso de cada 12 segundos.

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