Sentir-se capaz é tudo
9 NOV 2016 por LUCÉLIA BRAGHINI
Reivindicações pelo empoderamento feminino sempre foram uma constante na luta das mulheres. Muito mais do que a conquista de direitos iguais aos dos homens e o acesso a cargos públicos, está-se falando da apropriação do poder nas esferas micro: trata-se da mulher sentir-se legitimada e respeitada em sua própria casa, na relação com o parceiro. Ter assim, espaço para opinar de igual para igual, exercitar seu direito de escolha e sua capacidade de tomar decisões, mesmo que estas sejam diferentes das do parceiro.
O que muitas mulheres não levam em conta é que se por um lado, a sociedade nega-lhe os direitos e privilegia uma ordem masculina de mundo, por outro lado, ela própria age contra si na medida em que não empreende sua luta e voluntariamente deixa de ser a autora de sua história, colocando nas mãos de outro a pena.
Na história abaixo, a personagem Maria protagoniza um drama de muitas mulheres que ainda nos dias de hoje continuam a se eclipsar do seu poder pessoal, delegando-o ao parceiro, depositando neste, suas expectativas de felicidade e realização:
“Era uma vez uma mulher sem poder. Seu nome era Maria.
Maria era casada com o João, tinha 03 filhos, mas não era feliz. Volta e meia o João lhe espancava ou falava aquelas coisas terríveis, que machucavam muito o seu coração. Nem ela mesma sabia explicar direito porque ele fazia aquilo. Às vezes era porque ambos começavam a discutir e ele ficava nervoso, outras vezes era porque tinha tomado ‘umas e outras’ e já chegava em casa ‘com quatro pedras na mão’; outras vezes ainda nem disto precisava. Parecia que ele estava descarregando nela sua ira e sua tristeza pelas dificuldades que ele, João, tinha encontrado na vida. O baixo salário, o patrão de cara amarrada, as surras que levou do pai, a vida dura que ele próprio também sempre levou.
Maria sentia muita raiva de João quando ele a maltratava, mas não reagia, pois pensava consigo: ‘Ruim com ele, pior sem ele’.
Maria achava sua vida muito sem graça e muitas vezes se perguntava para onde tinha ido o seu querer, pois parecia muito conformada com tudo aquilo. Desde o começo, João sempre fez questão de deixar claro que ele era o ‘galo do terreiro’ e que não aceitaria mais ninguém que tentasse cantar de galo em sua casa. Maria foi se acostumando a ficar embaixo da asa do João e aos poucos foi percebendo que não precisava se dar ao trabalho de pensar, pois ele pensava por ela. Então, ela foi se sentindo cada vez mais insegura para agir e tomar suas próprias decisões, mesmo nas coisas mais simples como comprar um vestido novo ou sair para dar um passeio. Maria aos poucos foi deixando de existir. O João havia se tornado seu dono e sempre interferia e queria saber de tudo. Maria esqueceu que havia aprendido a dizer NÃO. Ela só falava SIM para o João, pois tinha medo de sua reação, caso dissesse não. Maria nunca se esqueceu da mancha roxa que ele deixou no seu rosto de uma vez que ela tentou dizer o que pensava. Assim, com o tempo foi começando a pensar que não era mesmo capaz de caminhar sozinha, ou de dar seus próprios passos na vida. Afinal, como iria sustentar os filhos com o baixo salário que recebia? Além disso, em sua família ninguém separou. Como iria assumir isso diante de todos? E que outro homem poderia enxergá-la tão desgrenhada estava? Maria sentia vergonha e tristeza de olhar para sua própria imagem no espelho. Então pensava que sua única saída seria continuar esperando e acreditando na mudança do João. Todas as noites quando ia dormir, após ele virar para o outro lado, pensava consigo: ‘Quem sabe amanhã ele muda!!!’”
Muitas mulheres em maior ou menor grau vivem este drama. Qual seria o agente catalisador que proporcionaria o seu despertar? Isto é, o que faz uma mulher se apropriar de sua vida, tomar de volta o poder que emprestou ao parceiro? A primeira questão que me ocorre é que para alguém se mexer necessariamente deve haver um grau relativamente alto de desconforto, uma presença inquietante de uma indignação ou angústia. Ninguém muda se está se sentindo bem na situação em que se encontra. No caso da nossa personagem, Maria, um grito se fez prisioneiro em seu peito, afinal, ao se casar com João tinha muitos sonhos que não foram realizados.
O quanto esses sonhos são preciosos para a mulher, sua determinação em não renunciar a eles, a dimensão da fé que possui em si mesma... São estes alguns fatores que podem funcionar como poderosos agentes catalisadores. No caso de Maria, a falta de confiança em si, aliada à perda progressiva de domínio e controle sobre a própria vida, fez com que ela se sentisse insegura ao mesmo tempo em que se nutria da ilusória sensação de proteção proporcionada pela sombra da “asa do João”. A sombra da “asa” do parceiro é justamente uma faca de dois gumes, pois, se por um lado representa um refúgio e um oásis em meio ao sol escaldante (adversidades e obstáculos da vida), por outro lado, ofusca o brilho ou até mesmo impede o voo de quem está por baixo. De tanto ficar sob a asa de João, isto é, vivendo sob o jugo do parceiro, Maria foi se tornando física e psicologicamente desenergizada, de forma que não se sentia com forças suficientes para bater suas próprias asas (nem ousava tentar).
Além disso, há um fator de suma importância que não deve ser negligenciado: aquele que bate as asas (aquele que age) deve também responder pelos efeitos dos movimentos de suas asas (as consequências de suas ações). No caso, se as consequências forem negativas, em se tratando do casal João e Maria, é João quem terá que se ver com elas. Vivendo à sombra de outro, Maria se esquiva de passar por estas contrariedades e aborrecimentos. Todavia, o preço que paga é muito alto, pois, anulando-se, renuncia à autoria de sua própria vida.
Chegamos à constatação que ser ‘autor’ é muito importante, pois isto é o que verdadeiramente dá sentido à nossa existência. Contudo, quando somos autores sempre corremos algum risco. Risco de nosso trabalho não ser aceito, risco de não agradar, risco de ser bem sucedido e este sucesso leva-nos a abrir mão do conforto e da segurança de um modo de vida já conhecido, risco de perder o parceiro (“o João é tudo que eu tenho!!!!”, diria Maria). Enfim, são tantos riscos...
Cada mulher tem dentro de si uma Maria que pensa e que quer alçar voo, mas tem medo. A chave para libertá-la da gaiola, nós a temos também dentro de nós. A questão é decidir usá-la e o que fazer depois com o que vier a partir disso. Maria pode passar o resto de sua vida com o João e se sentindo infeliz ou ela pode correr o risco de passar a existir dentro da relação e ver o que acontece. Talvez o João aceite essa nova mulher e se torne ele também um João diferente. Talvez não.
Enfim, é preciso tentar. Só assim, Maria irá descobrir do que é capaz. Sentir-se capaz é tudo. Sem isto, não podemos viver.
Lucélia Braghini
Psicóloga psicodramatista, atua no SOS Ação Mulher e Família desde o ano de 1984. Doutora em Saúde Mental pela Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP. Autora do livro “Cenas repetitivas de violência doméstica: um impasse entre Eros e Thanatos”. Perfil completo
Nenhum comentário:
Postar um comentário