ALINE ALVES — 19 DE OUTUBRO DE 2016
Como mulher estuprada, eu gostaria de poder nunca mais tocar no assunto. Atualmente, a banalização dos debates tem se desdobrado na glamourização de tantas coisas que nem deveriam existir, como o estupro, a prostituição, o vício em drogas, a anorexia, as doenças mentais. Não há glamour em nada disso; ao contrário, há muita dor. Tudo o que uma pessoa traumatizada deseja é esquecer. Mas o mundo em que vivemos está sempre nos obrigando a lembrar. A mais recente ocasião em que tive que reviver minhas experiências foi o brutal feminicídio da argentina Lucía Pérez.
Como mulher estuprada, eu gostaria de poder nunca mais tocar no assunto. Atualmente, a banalização dos debates tem se desdobrado na glamourização de tantas coisas que nem deveriam existir, como o estupro, a prostituição, o vício em drogas, a anorexia, as doenças mentais. Não há glamour em nada disso; ao contrário, há muita dor. Tudo o que uma pessoa traumatizada deseja é esquecer. Mas o mundo em que vivemos está sempre nos obrigando a lembrar. A mais recente ocasião em que tive que reviver minhas experiências foi o brutal feminicídio da argentina Lucía Pérez.
O estupro sempre existiu e sempre esteve relacionado com a imposição do poder. Seja de um indivíduo sobre o outro, seja de um povo sobre o outro, quando em conflitos entre tribos ou nações o grupo subjugado é violado de tantas maneiras: assassinatos, saques, cárceres, escravização e violação das mulheres. O estupro sempre esteve na lista dos espólios de guerra. O estupro sempre foi o exercício da violência, não do sexo. Não é a máxima expressão do desejo de um homem por uma mulher, como tanto se tenta fazer parecer. Por esse e outros motivos tratar da questão a partir da roupa ou do comportamento da vítima é tão bárbaro. A questão deveria ser relacionada não à vítima, mas ao agressor.
Um grupo invasor, que se impõe, entende ser seu direito a apropriação de tudo o que pertence ao grupo dominado, inclusive suas mulheres, porque a mulher é convencionalmente tratada como posse da sociedade patriarcal. Isso inclui a posse sobre sua sexualidade: a determinação da idade que vai se tornar sexualmente ativa, da pessoa com quem fará sexo, da forma como se veste – ou como apresenta sua identidade sexual para o mundo – e de tudo o que poderá fazer com que esse indivíduo seja reconhecido como mulher. A ideia de que a mulher tem que se dar ao respeito para ser respeitada traduz a ordem de que para ter respeito a mulher tem que se adequar ao mundo dos homens e para isso ela tem que aceitar essas determinações que esse mundo escolhe por ela.
Isso parece estar mais grave nesses dois séculos em que se descobriu que a mulher é dotada de libido. Antes a dominação da mulher era a dominação de um objeto, agora é a dominação do exercício da sexualidade feminina. O estupro me parece, no mundo de hoje, a reação à descoberta desse atributo da mulher. Reação que corresponde ao repúdio a essa sexualidade, à estranheza de se reconhecer como sexual o indivíduo que não deveria nem sequer ter vontade, que dirá desejo. A libido feminina é imoral e imprópria, porque não se adequa às instituições masculinas. A mulher que quer conquistar sua liberdade terá que adequar sua sexualidade às suas funções sociais: à maternidade e ao casamento. E qualquer manifestação sexual livre da mulher parece ameaçar essas instituições.
O homem que estupra não tem uma patologia sexual – ele é um sádico. O sadismo é o exercício do poder pela violência. A violência em forma de estupro, a meu ver, é a tentativa de punição da sexualidade feminina, até mesmo da mulher que ainda não é sexualmente ativa, como é o que acontece nos casos de pedofilia. A criança com a anatomia feminina pode ainda não ser sexual, mas um dia será, é o seu corpo que a obrigará a vivenciar sua sexualidade. Isso, por si, autoriza o estuprador a puni-la. Quando ela cresce, não importa a roupa que ela vestirá, os lugares que ela frequenta, o horário que está fora de casa, as pessoas com quem anda: ela sempre será um indivíduo sexualizado em potencial, mesmo que não esteja procurando por sexo. E a sexualidade que não se adequa ao patriarcado precisa ser punida. O estuprador é um censor, e se entende no direito de regular a liberdade feminina. Ele aplica um castigo cruel naquela que ameaça as estruturas do mundo que ele reverencia, mesmo que o exercício da liberdade sexual não seja motivado de forma alguma pelo objetivo de ocupar o lugar do homem, mas apenas de realizar aquilo de que o corpo da mulher é dotado: a busca pela satisfação sexual. Ainda vivemos num mundo em que a mulher livre é punida apenas por ser mulher e isso é naturalizado tanto por homens quanto por mulheres que tentam responsabilizar a vítima.
E também por aqueles – homens e mulheres – que não se sensibilizam com a condição feminina. Que fazem pouco caso dos nossos medos e dos nossos traumas. A mulher estuprada foi punida por ser mulher, e pela possibilidade de querer ser sexualmente livre. A cada vez que uma de nós é estuprada, cada uma que já passou pela experiência é estuprada novamente, porque o evento nos diz que não fomos e jamais seremos redimidas. E cada pessoa que faz do evento algo corriqueiro, que justifica a violência, que nos culpa pelo que passamos, ou que é apenas indiferente, está nos estuprando de novo. Deixo aqui o apelo: não estuprem mais Lucía. Não me estuprem mais.
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