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sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Da violência sexual contra mulheres com deficiência: a invisibilidade

Deborah Prates
Advogada e Ativista da causa das pessoas com deficiência Quarta-feira, 6 de dezembro de 2017
O presente artigo divide-se em quatro partes, as quais serão publicadas sucessivamente. 
Sobre quem escreve
A autora passou a se interessar pelo feminismo (movimento de transformação social) faz cerca de 11 anos, a partir das opressões, injustiças, que passou a viver após a cegueira.
Percebeu que, além da opressão que experimentava decorrente de gênero, existia outra, aquela decorrente da deficiência. Percebeu-se invisível diante dos olhos preconceituosos de uma sociedade capitalista, machista e racista.
Diante desses fatos, tornou-se feminista, no ponto de vista da interseccionalidade. Esta nos remete a um conceito em construção, pelo que, como mulher com deficiência, encontrou abrigo, apoio, para prosseguir na existência.

Entendeu que a mulher, exercendo preponderantemente o papel de cuidadora dos filhos/família, teria o poder de educar pessoas melhores no que diz respeito ao quesito igualdade, vez que esta se inicia no seio familiar.
As crianças, à vista disso, quando encontrassem na escola coleguinhas com deficiência não enxergariam neles diferenças por conta, tão-só, do estereótipo, tal qual acontece em 2017.
Dessa forma, não há a menor dúvida do quanto o feminismo agrega com a causa da pessoa com deficiência. Essa afirmação pode ser conferida no belíssimo texto intitulado “Deficiência, direitos humanos e justiça” de Débora Diniz, Lívia Barbosa e Wederson Rufino dos Santos, interessando para o momento o trecho a seguir transcrito:
“O tema da igualdade de gênero é um plano de fundo na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, desde o preâmbulo até as seções específicas sobre a proteção às meninas e mulheres com deficiência e o papel das famílias das pessoas com deficiência (ONU, 2006a).”
Na sua vivência certificou-se que o ser que habita um corpo que foge aos padrões de “normalidade” imposto pela indústria da moda está fora do ângulo de visão da coletividade. Está fora do mundo! Ao longo deste trabalho vem apresentar sugestões de intervenções que respeitem os direitos humanos, fundamentais, dessas mulheres. Para tanto será analisado o conjunto de circunstâncias da realidade desse grupo populacional.
Quem não é visto, não é lembrado
Antes de enfrentar o tema, faz-se necessário tecer algumas abordagens acerca da violência, opressão, que agasalha o contexto das pessoas com deficiência em geral. Isto porque as opressões se somam até chegar a sexual.
Sem dúvida é a invisibilidade social o primeiro sintoma do preconceito decorrente da deficiência. No balcão da vida a autora experimentou seus dois lados, pelo que pode afirmar que enquanto vidente era enxergada pela coletividade. Após a cegueira, notou-se invisível, despercebida. Quis, então, conhecer a razão desse fenômeno e passou a pesquisar, tanto nos livros, quanto na prática, sobre o assunto. Ficou estarrecida com o que encontrou.
Releu a obra O Corcunda de Notre-Dame, de Victor Hugo, e a tomou como ponto de partida até os dias atuais. A história dá conta da discussão do tema da deficiência na Idade Média. A vida de Quasímodo, personagem externamente disforme e grotesco, mas também terno, ingênuo e apaixonado, passada em Paris, no Século XV, mostrou ao homem cristão que nem tudo na criação é humanamente belo, que o feio e o disforme convivem com o gracioso, que o grotesco é o reverso do sublime.
Quasímodo é o exemplo de como a pessoa com deficiência era concebida e tratada na Idade Média. O próprio autor, ao descrevê-lo, o fez com os seguintes atributos:
“Batizou seu filho adotivo, e o chamou Quasímodo, fosse por querer assinalar assim o dia em que o encontrara, fosse por querer caracterizar por meio daquele nome até que ponto a pobre criaturinha era incompleta e mal desabrochada. Com efeito, Quasímodo, zarolho, corcunda, torto, não deixava de ser um quase alguém.” – grifo meu – (HUGO, 1973, p. 120).
No dia 3 de dezembro de 2017 – Dia Internacional da Luta das Pessoas com Deficiência – 1/4 da população brasileira (último censo demográfico do IBGE) ainda é tratado como “quase alguém”.
A sociedade é, absurdamente, insensível em relação aos interesses desse grupo de humanos. Prefere dar-lhes assistência, auxílio, benefícios, olhares caritativos, ao invés de promover a conscientização, de sorte a mudar a ordem social e política que as oprime.
Patente, face a essas breves considerações, que esse olhar de piedade, patriarcal, configura a basilar violência, vez impedir o desenvolvimento humano destas pessoas.
Ao constatar a deficiência, a coletividade cobre os ombros da pessoa com a impactante capa da invisibilidade social.
Tudo mudou na vida da autora a partir do marco da cegueira em ambos os olhos. De pronto mudou a forma com que era recepcionada. Antes era tratada por Dra. Deborah Prates, após a deficiência passou a ser nomeada de advogada cega. Perdeu o nome. Passou a ser não vista. Mas como, se era o mesmo ser, a mesma essência?
O uso da bengala fora o suficiente para que a vizinhança a julgasse “quase alguém”. Depois, por questão pessoal, conquistou um cão-guia. Por isto, passou a ser chamada: a mulher do cachorro. Em um momento de total vulnerabilidade conscientizou-se que o ser que habitasse um corpo que não mais se encaixasse na fôrma da indústria da moda estaria banido da vida.
A sociedade enxerga apenas a deficiência e não o ser. Vê-se, pois, tão-só, a bengala, o cão-guia, a cadeira de rodas, a muleta, etc.
Quando nos dirige a palavra o faz em tom de piedade e em tom de diminuição. Um cadeirante adulto é cumprimentado com um afago na cabeça. Se for perto do horário de refeição, por ilustração, lhe é perguntado: “Vai papá, ou já papou?” Desta maneira, a pessoa com deficiência é infantilizada para todos os efeitos sociais e legais. É que para elas a magnífica legislação pertinente não lhes é aplicada por ainda não serem alguém.
Pesquisando a história, verificou-se que a segregação social das pessoas em classes, grupos, é mais antiga que o capitalismo. No entanto, este a perpetua de modo natural. É essa naturalização da violência/ opressão que precisa ser desfeita, desconstruída, com urgência. Esse é o intuito do presente trabalho.
Nessa premente desconstrução é que tem lugar os exercícios de acessibilidade atitudinal. Mudar hábitos e comportamentos relativamente as pessoas com deficiência é a saída para um Brasil mais igual. Educar é preciso.
Viver é ter a oportunidade de experimentar a condição humana. A sociedade, com a opressão imposta às pessoas com deficiência, está subtraindo o tempo de vida dessa significativa parcela da população.
Do valor simbólico da mulher com deficiência 
Vale registrar que o valor simbólico da mulher com deficiência é extremamente baixo na “bolsa de valores humanos”.
No texto citado na primeira parte deste trabalho (Deficiência, direitos humanos e justiça) destaca-se outro trecho:
“Mas esse silêncio foi desafiado com a entrada de outras perspectivas analíticas ao modelo social, em especial com o feminismo. Não por coincidência, o modelo social da deficiência teve início com homens adultos, brancos e portadores de lesão medular (DINIZ, 2007, p. 60), um grupo de pessoas para quem as barreiras sociais seriam essencialmente físicas e mensuráveis. A inclusão social dessas pessoas não subverteria a ordem social, pois, no caso deles, o simulacro da normalidade era eficiente para demonstrar o sucesso da inclusão. Ainda hoje, os sinais de trânsito ou as representações públicas da deficiência indicam um cadeirante como ícone.” – grifos meus – (DINIZ, BARBOSA, SANTOS, 2009, pp. 71 e 72).
Vê-se, portanto, que a figura do homem representa a deficiência. Hodiernamente, as placas indicativas já estão mudando. Porém, o conceito do homem como representante da espécie humana ainda é patente na nossa sociedade.
Presentemente a nossa denominação taxonômica é Homo sapiens. É o nome dado à espécie dos seres humanos. A expressão (latim) significa: o “homem sábio”.
Ora, essa reprodução perpetua o sistema patriarcal, bem como o machismo. Não faz sentido generalizarmos a espécie nos homens, vez que existem as mulheres. Óbvio que sem elas o mundo não existiria. Então, são e sempre foram as mulheres fundamentais para a representação da espécie humana, tanto quanto os homens, ainda que limitadas por eles desde sempre, em decorrência da cultura.
Logo, usarmos “homem”, no sentido lato senso não é justo para com as mulheres, as quais também compõe a história da civilização. Desse modo, em 2017 o homem não pode mais ser reconhecido como o ser humano padrão.
Melhor seria se a espécie humana fosse representada pela expressão: SER HUMANO.
Face ao exposto, fica nítido – simbolicamente – que o homem sem deficiência vale mais que a mulher sem deficiência e que ambos, conjuntamente, têm peso maior que o homem com deficiência. Computando-se as três figuras nesse contexto simbólico, conclui-se que são mais valiosas que a mulher com deficiência. Estas não são visíveis, nem mesmo, por suas iguais sem deficiência. Tanto que não são chamadas para as rodas de conversa feministas.
Com essa análise simbólica fica lógico afirmar que as mulheres com deficiência estão bem mais vulneráveis à prática dos crimes sexuais que as suas iguais sem deficiência, tanto nos espaços privados (lar), quanto nos públicos (ruas), como se verá no curso dessa apresentação.
Deborah Prates é advogada, feminista, membra efetiva do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), presidente da Comissão da Mulher do IAB e membra da Comissão de Direitos Humanos do IAB. Integra os coletivos feministas PartidA e Movimento da Mulher Advogada do RJ. Foi a primeira advogada com deficiência a ingressar nos quadros do IAB em 174 anos de existência.

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