As crianças que morrem a sociedade que se omite
Lúcio Flávio Pinto
Adital
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Dos 25 bebês que morreram nos 12 primeiros dias de junho na UTI neonatal da Santa Casa de Misericórdia do Pará, apenas dois pesavam mais de três quilos. Os demais ou estavam um pouco abaixo do peso normal ou eram subnutridos. O de maior peso (3,14 quilos), ainda assim não tinha condições anatômicas de sobrevivência: seu intestino estava dentro do pulmão.
É possível que a secretaria de saúde do Estado e a direção do hospital consigam provar que tantos óbitos em tão pouco tempo (média de duas mortes diárias) não tenham sido causados por infecção hospitalar. Apenas três casos com essa origem foram reconhecidos oficialmente. O percentual não é de 10%, o que caracterizaria um surto epidêmico, porque algumas das 25 crianças com óbito já chegaram doentes ao hospital.
Mas se foram realmente apenas três as mortes por infecção hospitalar, proporção grave, mas que não chega a caracterizar situação crônica de ameaça às crianças que nascem ou são atendidas na Santa Casa, esse número tem um componente aleatório. Pode se manter estável, cair ou ter um pique de ocorrências. As condições de funcionamento normal da instituição não previnem esse risco. Pelo contrário: sujeitam os pacientes a um grau de ameaça bem acima do desejável.
Certamente a culpa não é, em regra, da Secretaria de Saúde, da direção do hospital, do seu corpo técnico ou das condições físicas da Santa Casa em si. Todos esses componentes podem influir para tornar real o risco potencial no atendimento diário dos pacientes. O sindicato dos médicos do Pará recebeu denúncia dos obstetras que trabalham na Santa Casa sobre a pressão do excesso de atendimento, material insuficiente para a realização dos serviços, ambiente de trabalho insalubre e carência de pessoal, sobretudo nos plantões.
Quantas vezes episódios semelhantes já não foram registrados nos últimos anos, com denúncias e desmentidos, iniciativas e omissões, correções e retorno às rotinas anteriores? É inevitável concluir que se trata de um problema estrutural, com múltipla alimentação. Nos seus dois mandatos, o economista Simão Jatene é o que mais tem investido em ativos fixos no setor de saúde, muito mais do que fez o médico Almir Gabriel em seus dois mandatos.
Mas a desproporção entre as obras físicas e a operação dos hospitais e outras dependências construídas é tão grande quanto têm sido intensas as denúncias sobre superfaturamento e desvio de recursos para fundos de campanha. Infelizmente, a atuação dos órgãos de controle só é incrementada nas ocasiões de crise. Depois, retorna ao padrão burocrático e desatento, que nem confirme e nem desmente as suspeitas sobre a aplicação dos recursos públicos e a eficácia dessa diretriz de ação do governo.
Outra fonte das eternas crises da Santa Casa é sua própria condição física. Instituição de caridade, que atende a população mais carente, a Santa Casa é o ponto de afunilamento das condições de vida dessa sua clientela em seu momento de maior necessidade. Causas mais remotas acabam por explodir na entrada e no interior do hospital, cujas dimensões servem para abrigar a complexidade da pobreza e da miséria que aflora no momento da catarse, da patologia social.
Os recursos do SUS são constante e progressivamente dilapidados e roubados pelos gestores municipais, por serem dos mais abundantes ao seu alcance (por desgraça, junto com os fundos educacionais). O atendimento estatal está muito longe de corresponder às necessidades dos cidadãos nesses dois campos vitais. A demanda cresce exponencialmente e a oferta, quando muito, aritmeticamente. Nos gargalos, a diferença explode. Todos se assustam quando ela ocorre. Mas não sem interessam pelas causas do seu surgimento e reprodução.
Ainda que a Santa Casa oferecesse um padrão civilizado de atendimento à sua clientela, diminuindo os índices de mortalidade, morbidade, infecção hospitalar e outros mais, teria o poder de mudar o perfil das pessoas que atende? Provavelmente, não.
Dos 25 bebês que morreram ao nascer nos 12 primeiros dias de junho, 10 eram de Belém mesmo. Quatro eram da vizinha Ananindeua. A maioria dos outros provinha da região nordeste, sob influência direta da capital. Mas dois foram transportados desde Parauapebas. O transporte foi em condições precárias, como de todos os demais. As parturientes não tiveram o acompanhamento médico e ambulatorial devido. Oito delas são adolescentes, com idades entre 13 e 17 anos. A maioria dos bebês nasceu com doenças congênitas, resultantes de algum típico de infecção contraída pelas mães. Sífilis ainda é causa de morte, como na Idade Média ou no início da industrialização.
Quando os casos se tornam escandalosos, há uma mobilização geral e as coisas são razoavelmente ajustadas. Mas como as causas originais dos problemas não são atacadas, logo a mecânica do processo reintroduz os elementos de uma nova crise, que desabrocha com toda a sua virulência, escandalizando os espectadores do drama (mas não, na mesma escala, os seus protagonistas, até pelo processo natural de dessensibilização pela rotina na tragédia).
O novo drama voltou a eclodir no dia 6, quando oito crianças morreram na UTI neonatal. Nos dias imediatos houve uma redução, mas no dia 17 aconteceram mais cinco mortes e outras quatro no dia seguinte. A soma dos 12 dias é metade das 54 mortes ocorridas em junho de 2009, na mais grave crise desse tipo na Santa Casa nos últimos anos. Cabeças foram cortadas, outras caíram por gravidade, promessas foram feitas. O governo da petista Ana Júlia Carepa foi maculado por essas mortes. O governo tucano de Simão Jatene já não escapa mais desse estigma. No atendimento de saúde, os dois governos aparentemente opostos se parecem muito. E a própria incapacidade da sociedade de mudar esse enredo triste e nefando.
Uma situação tão negra que alguém, dotado de humor da mesma tonalidade, haverá de comparar o silêncio quase geral diante das mortes dessas crianças ao barulho bem modulado da campanha contra a matança dos cães. Se latissem, os humanos teriam a mesma atenção?
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