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quarta-feira, 26 de junho de 2013

"Temos de ter uma rede de serviços especializados para que a mulher conheça mais sobre os seus direitos"

Considerada uma das principais ferramentas de combate à violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha é uma grande conquista para a sociedade, principalmente para as vítimas de agressões. No entanto, muitas mulheres, que além de sofrerem com a agressividade de seus companheiros, enfrentam algumas barreiras das políticas públicas como as falhas no atendimento dentro das Delegacias da Mulher e a falta de capacitação das corporações policiais para tratar das questões de gênero. Para a socióloga Wânia Pasinato, é preciso se desvincular do conceito de somente criminalizar e punir o agressor e passar a investir ainda mais na assistência às mulheres vítimas desta violência. Em entrevista à FEAAC, a pesquisadora citou a necessidade das instituições em trabalhar como parceiras e melhor aplicação dos termos da Lei Maria da Penha.

FEAAC – Percebemos na mídia um grande número de casos de violência contra a mulher. Em sua opinião, e baseada em estudos realizados pelo NEV-USP, as mulheres perderam o medo de denunciar ou ainda há muito para divulgar referente a este tipo de violência?
Wânia Pasinato – Acredito que sejam estes três fatores em conjunto, porém com pesos e em momentos diferentes da história. No Brasil, temos aproximadamente 30 anos de discussão sobre violência contra a mulher como um problema público. Estes debates se iniciam no final dos anos 70 e começo dos anos 80, devido a alguns homicídios passionais, como o caso da cantora Eliana de Grammont, assassinada pelo ex-marido e músico Lindomar Castilho. Este e outros crimes causaram grande reação, principalmente, dos movimentos feministas, que denunciaram a existência de violência cometida contra as mulheres e o silêncio da sociedade perante a estes casos. Na época, alguns Tribunais de Justiça mantinham impunes os agressores, reconhecendo que a violência era justificada, já que os acusados alegavam ‘legítima defesa da honra’.
No bojo destas discussões, surgiram também as denúncias sobre o cotidiano violento vivido por algumas mulheres, dentro de suas próprias residências, pelas mãos de seus companheiros, dando ao Estado a necessidade de assumir o compromisso de deter esta violência. Naquele momento, se dizia principalmente em criminalizar, punir tal ato. Baseado neste contexto que se criam os conceitos de Delegacias da Mulher.
Durante estes anos, houve muitos avanços significativos em termos de políticas públicas, aumentando o número de Delegacias da Mulher, a criação de outros serviços de atenção a estas mulheres vítimas de violência e, cresce também, o debate público e o reconhecimento de que esta violência tem de ser denunciada, enfrentada. O tema deixa de ser um assunto tabu na sociedade e mostra às mulheres que este ato deve se tornar público e que se deve procurar ajuda.
Tudo isso impulsiona as campanhas, os estudos de casos e há uma abordagem mais conceitual do que é esta violência. Obviamente, a imprensa vem no rastro destas discussões e passa a dar maior publicidade aos casos de violência. Então, entramos em um ciclo virtuoso de incentivo porque quanto mais a mídia expõe os casos de violência, explorando a necessidade de denunciar e pressionando o poder público, mais mulheres se informam sobre a existência destas políticas públicas de atendimento à mulher.

FEAAC – Em seus estudos, há como identificar qual a razão da violência, ou seja, o que ocasiona certo tipo de violência, e qual a mais comum, por exemplo: ameaças, agressão física ou assédio sexual?
WP - Não temos como saber, porque não há esta informação sistematizada. Nossa principal fonte de informação sobre violência contra a mulher são os registros policiais e estes não vão além de uma distribuição por tipo de crime, por exemplo, se houve uma lesão corporal, somente ameaças ou cárcere privado.
Nos casos das motivações da violência, esta não é uma informação que o boletim de ocorrência recolha de uma maneira padronizada. Então depende do policial que está fazendo o boletim de ocorrência de como ele valoriza este motivo, como ele entende e transcreve no boletim de ocorrência.
Durante as pesquisas, é possível identificar que há algumas recorrências como suspeitas de traição, consumo de álcool e drogas, e discussões em torno de conflitos familiares. São recorrências nos relatos das mulheres, mas também é muito difícil para nós podermos afirmar que estas são, de fato, as causas da violência. Parecem ser mais um dos motivos que fazem com que a violência acabe ocorrendo, explodindo, mas não que sejam a causa, a raiz do ato.
A raiz estaria na desigualdade que se constitui a relação entre homens e mulheres na sociedade. São relações de poder, fazendo com que o homem se sinta no lugar de dominação sobre a mulher, reagindo violentamente toda vez que a companheira tenta se deslocar da posição de submissão.

FEAAC – Podemos dizer que o atendimento dentro das Delegacias de Defesa da Mulher é ideal ou ainda há a necessidade de capacitar melhor os profissionais que atuam nestes locais? O que fazer para mudar este cenário?
WP - Não tenho a menor dúvida de que há muito para se fazer. As Delegacias da Mulher, quando planejadas nos anos 80, foram propostas para ser uma resposta do Estado sobre a violência contra a mulher, justamente com base na denúncia de que as mulheres que procuravam as delegacias comuns eram mal tratadas pelos policiais, que naquela época eram predominantemente, do sexo masculino.
Parte do movimento de mulheres se aproximou desta proposta e destacou a necessidade de algumas características nesta especialização como atender somente mulheres vítimas de violência que tivesse uma motivação sexista. Na época não se usava ainda “gênero” como conceito justificativo. Era ideia da condição feminina, o ser mulher que motivava a violência.
A especialização teria de ser dada, também por uma capacitação destes policiais, pelo movimento feminista para criar este corpo de conhecimento e reconhecer esta mulher vítima como alguém que poderia ser ajudada e alcançar sua autonomia.
Foi um movimento inicial que, por um período, deu certo e pouco a pouco foi acontecendo um afastamento. A delegacia foi virando uma delegacia de polícia propriamente dita e houve o afastamento do movimento de mulheres. Por várias razões, uma delas por perceber que as mulheres que iam à delegacia não queriam desconstruir sua autonomia. Elas queriam que alguém dissesse aos maridos que eles não poderiam bater nelas, o que também causou alguns ruídos nesta relação.
Mas, temos alguns avanços importantes neste cenário? Acho que temos. A partir dos anos 2000, por exemplo, quando a Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) começa a mexer na matriz curricular de formação das polícias e introduz um tópico sobre violência contra a mulher, sobre gênero, e isso passa a integrar a formação policial.
No entanto, há uma distância muito grande entre o que eles aprendem na teoria e aquilo que se aplica na prática. Porque quando um policial passa por um concurso e é designado para trabalhar em uma delegacia, não há nenhum estudo sobre o perfil deste policial.
Além disso, são feitos cursos de capacitação periodicamente, mas não se fez até hoje nenhuma avaliação de impacto nacional para saber quantos policiais fazem este curso e depois, quanto eles apropriam deste conteúdo, para as suas próprias vidas e para o seu trabalho.
Seria necessário conciliar tanto os cursos na formação destes policiais para terem bases teóricas mais consistentes, mas também cursos permanentes que se pudessem trabalhar junto às delegacias, na dinâmica e problemática dos atendimentos, e realizar estudos de casos para criar a oportunidade de discutir aqueles que fossem tomados como exemplares, possibilitando saber como é que cada policial se posiciona em relação a eles.
Enfim, seria necessário levar a especialização um pouco mais a sério. Enquanto não se conseguir, de fato, abrir espaço nestas políticas de segurança pública e convencer os representantes do Poder Executivo de que a questão da violência contra a mulher, a questão de gênero precisa ser enfrentada com políticas públicas, dando outro balanço a esta desigualdade de gênero, vai ser muito difícil com que consigamos avançar de maneira significativa com estas políticas.

FEAAC – No caso da escrivã, acusada de receber propina e, por este motivo, despida de forma brutal para ser revistada, o que faltou e sobrou neste caso, inclusive com a atitude do Delegado? Faltou bom senso e sobrou abuso de poder?
WP - Sobretudo foi um abuso de poder, porque ao assistir o vídeo, você percebe que em nenhum momento ela se recusa a ser revistada. Ela só reivindica que a revista seja feita por uma policial feminina, o que é direito de qualquer mulher cidadã deste País. Ela estava simplesmente exercendo um direito dela, não estava em nenhum momento atrapalhando a investigação.

FEAAC - Mas você acredita que o delegado tentou desviar este conceito, ou seja, que a escrivã se recusava a ser revistada?
WP - Porque para o delegado, a impressão que se tem ao assistir o vídeo é que ele se sentiu afrontado na sua autoridade como delegado corregedor. Primeiro pelo fato de ela ser mulher, e estar dizendo a ele o que tinha de fazer, e segundo porque o delegado insistia na sua ordem e ela resistia, impondo um direito que ela tinha.
Têm duas policiais femininas na sala que poderiam ter feito isso, poderiam ter se manifestado? Sim, mas não são policiais civis. Neste caso, esbarrariam em outras questões, que são as institucionais. Há ali a hierarquia. Se não me engano eram policiais municipais ou militares, que não iriam se impor contra o delegado sob o risco de serem presas por desacato a autoridade. Naquele espaço, este delegado era autoridade maior, a palavra dele era lei, isso também ninguém discute.
O que houve foi abuso da parte do delegado, não tenho nenhuma dúvida. Ele foi inábil como delegado, porque deveria conhecer este direito que a escrivã e qualquer outra mulher têm. O delegado poderia designar as duas policiais femininas para fazer a revista da escrivã, no entanto abusou também do seu direito de homem em relação a uma mulher.
Você vê a cena e pensa: se fosse um escrivão homem, o delegado teria partido para este tipo de atitude? Teria algemado, jogado o homem no chão e desnudado-o deste jeito? Dificilmente! Dificilmente ele arrancaria a roupa de um escrivão homem para ver se o dinheiro estava dentro da cueca.
Em relação à mulher, o delegado não teve o menor pudor. A justificativa é de que não houve atentado ao pudor porque ninguém mexeu no corpo da mulher, somente arrancaram a roupa dela. Mas ela foi exposta, ficou nua na frente de todas e de forma violenta.

FEAAC – A situação se agravou ainda mais por ter sido gravada e publicada na internet?
WP - Neste caso, se desloca para outro problema, eu não sei como este vídeo chegou à internet. Gravar o procedimento é uma prática da corregedoria para ser usado como prova nesta sindicância administrativa. Eles agiram achando que estavam agindo de maneira absolutamente legítima. Tenho certeza de que, até agora, o delegado não acha que agiu com abuso de autoridade. Para ele, sua ação está dentro dos limites da legalidade e das atribuições que o seu cargo lhe dá.
Gravar o procedimento da abordagem e da forma como ele fala com ela, acredito que faça parte das práticas da corregedoria porque é matéria de prova, tanto contra o acusado como de prova de defesa da autoridade corregedora para mostrar que não tem abuso. Por isso eu acho que ele não considerou um abuso, caso contrário não gravaria a ação. Isso, não estou querendo isentar o que ele fez, estou tentando entender que ele fez isso acreditando não estar errado.

FEAAC – E como analisar a atitude da corregedora que justificou a atitude dos policiais como estar “dentro do poder de polícia”?
WP - Acho que quando o inquérito foi arquivado, o que estava em primeiro plano era a denúncia de corrupção contra a escrivã. A questão de a escrivã ter sido despida veio à tona na medida em que este vídeo é divulgado. Somente neste momento se passa questionar a atitude do delegado. A corregedora viu o vídeo, mas eliminou este fato por não estar colocado como um problema. Porque ali, ela está como corregedora geral da polícia, não como delegada da delegacia da mulher.
O tema de proteção da mulher está circunscrito à delegacia da mulher, mulher vítima, então se estende a toda mulher, mas não se estende a toda polícia ou a toda política. A gente precisa de fato levar o problema da desigualdade de gênero para o interior das políticas públicas, mais amplas do que simplesmente à delegacia da mulher. Espero que chegue um momento, no futuro, que a gente não precise ter políticas especializadas de atendimento às mulheres porque todas as políticas atenderão as mulheres a contento, respeitando seus direitos como cidadã.
Mas ainda há muito para se fazer e temos de lutar para que estas delegacias continuem, porque, bem ou mal, elas se constituíram na principal porta de entrada para as mulheres que querem pedir ajuda para sua situação de violência. As delegacias são a principal referência para estas mulheres.
O melhor seria a mulher ter outro suporte além da delegacia, recebendo uma atenção imediata, inclusive para colocá-la em segurança e também seus filhos. Um suporte que não necessariamente significaria ir à delegacia e registrar um boletim de ocorrência.
Temos de ter uma rede de serviços especializados para que a mulher conheça mais sobre os seus direitos, tenha acesso a benefícios que vão ajudá-la a sair de casa, a romper com esta violência, as medidas protetivas que hoje estão previstas na Lei Maria da Penha para, se ela quiser separar do marido, conseguir a pensão alimentícia, a guarda dos filhos, a proteção aos direitos de propriedade, aos benefícios que são dados pelo Governo, como o Bolsa Família, ter centros de referência onde a mulher receba uma assistência psicológica e social.
Isso é mais importante do que ter somente a delegacia, que responde parte do problema da violência e uma parte muito limitada, porque responde na verdade a criminalização da violência e sabemos que não é a resposta para 100% dos casos.
Se ficarmos focados na delegacia, teremos sempre uma resposta muito parcial, limitada, e em alguns casos também é com distorções, porque a delegada, as policiais acabam assumindo para si este papel de ser a psicóloga, ser assistente social, de fazer o encaminhamento, fazer atendimento e não é esta a função dela, não tem formação para isso, e mesmo tendo formação, estão na delegacia não para serem psicólogas e sim policiais.
      
FEAAC – A Sra. acredita que a Lei Maria da Penha é a melhor ferramenta de combate contra a violência?
WP - Eu me tornei uma grande entusiasta desta legislação. Tinha muitas dúvidas quando a lei foi aprovada e se, de fato, devíamos ter uma lei especial para tratar da violência contra a mulher. Já tínhamos a Lei nº 9.099 que eu, particularmente, considero ainda muito promissora para, inclusive, os casos de violência contra a mulher. Quando eu estudei no doutorado a aplicação desta lei ficou evidente que o problema não era a Lei 9.099, mas a forma como estava sendo aplicada. Hoje, ao analisar a aplicação da Lei Maria da Penha, chego à mesma conclusão.
A Lei Maria da Penha é extremamente completa, complexa na sua proposta. Não é apenas uma lei criminal, é em si uma política pública, uma ação afirmativa de proteção dos direitos da mulher. Mas a forma que ela vem sendo aplicada tem se mostrado de uma maneira muito limitada, podendo fazer com que a lei perca seu efeito muito rapidamente, inclusive seu efeito simbólico para a sociedade.
O que me entusiasma nesta legislação é justamente por ela não ser apenas uma legislação criminal. Acredito que a resposta criminalizante é realmente limitada e deve ser decretada a determinados casos, mas não como resposta única para as mulheres.
A lei apresenta três eixos - atenção, proteção e assistência, e prevenção – que devem ser equilibrados, para que a lei seja aplicada integralmente. Temos de conseguir aplicar estas três medidas equacionadas caso a caso, o que se deve fazer em favor daquela mulher. E são, justamente, as medidas de proteção e assistência que ainda não conseguimos trabalhar de maneira adequada, porque a política de enfretamento à violência contra a mulher hoje, apesar de ter se desenvolvido, ainda está muito limitada aos dois extremos: segurança pública e resposta judicial.
Não se consegue ter um fluxo de atendimento para a mulher, no qual além do registro de ocorrência na delegacia, ela é encaminhada a um centro de referência para receber assistência psicológica, ter acesso aos benefícios que tem direito, participar de um grupo de terapia e reflexão.
Ou seja, os encaminhamentos aos serviços não existem. Primeiro porque faltam as políticas dos serviços e onde eles existem, trabalham isoladamente. Não temos a cultura de diálogo entre instituições, são poucas as discussões de articulação de redes no País e poucas as experiências existentes.
Além disso, as redes esbarram, assim como as delegacias, na inexistência de políticas maiores para que possa articular os serviços e as pessoas, porque são elas que vão fazer tudo isso se movimentar no cotidiano, mas acima delas há algo maior e este algo maior são os executivos estaduais.
Há uma falha de Estado, mais do que governo, porque o Estado Brasileiro não tem na sua estrutura esta incorporação da igualdade de gênero e da promoção de políticas de respeito, de promoção dos direitos das mulheres e dos homens enquanto cidadãos. Teremos avanços? Sim. E não conquistamos uma política desta em um estalar de dedos ou com uma legislação.
Temos avanços significativos, mas muitos são pontuais e alguns deles têm tempo de vida muito curto. Morrem como iniciativa porque não conseguem encontrar o respaldo destas outras instituições.
Isso quer dizer que temos de desistir de tudo? Pelo contrário, temos que continuar trabalhando, explorando algumas práticas que tem alguma promessa de sucesso. Continuar analisando, divulgando, tentando entender porque certas práticas dão certo em determinados contextos e o que é preciso para que elas possam ser transferidas para outros contextos e adaptadas.
Assim poderemos ir se disseminando e criando um coletivo de práticas que, de alguma maneira, contribuam para o sucesso da implementação da lei, para a proteção dos direitos da mulher e para a construção da autonomia destas mulheres.

FEAAC - Sobre O Projeto do Pacto de enfrentamento da violência contra mulher assinado tardiamente no Estado de São Paulo: É possível colocá-lo em andamento a contento sem um órgão no Estado de São Paulo que se dedique às políticas públicas para as mulheres (uma Secretaria de Políticas públicas para as mulheres do Estado de São Paulo)?
WP - O principal obstáculo está ainda na falta de comprometimento do governo do Estado e dos municípios que assinaram este pacto e receberam recursos para dar andamento aos projetos que foram aprovados.
Isso se expressa, por exemplo, com a falta do compromisso na contrapartida porque o pacto, que é federativo, prevê que cada esfera de governo contribua com sua parte na execução das políticas. Não temos uma Secretaria no estado de Políticas para Mulheres, temos algumas coordenadorias em alguns municípios, mas não em todos, então isso também limita um pouco a execução nestes municípios.
Por outro lado, o próprio pacto, na proposta que é formulada pela Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres, recomenda a existência destes organismos de políticas para mulheres, sendo estes responsáveis pela execução das políticas em estados e municípios.
O pacto recomenda ainda a constituição de câmaras técnicas que devem ser formadas por representantes de todas as secretarias do estado ou municípios, que tenham políticas direcionadas à mulher e que contribuam para a promoção dos seus direitos nos eixos do pacto. Devem ser representantes da sociedade civil, conselhos da mulher, universidades, ONGs feministas.
Mas, percebe-se que nestas câmaras técnicas muitos representantes não têm conhecimento sob a temática dos direitos da mulher e não tem nenhum poder de criar dentro de sua secretaria uma mobilização em torno da implementação destas políticas.

FEAAC - Depois do “Projeto Piloto” da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, que propunha a “reengenharia das delegacias”, ficamos diante da possibilidade do fechamento das delegacias especializadas no atendimento a violência doméstica na região metropolitana de Campinas. Em sua opinião será necessário (re) pactuar fazendo ajustes no que diz respeito a policia civil e ao judiciário?
WP - Acredito que tenha sido dos Departamentos do Interior que tenha proposto esta reengenharia. As equipes seriam diluídas pelos distritos policiais e se criaria um setor de atendimento especializado à mulher dentro de um distrito policial.
É difícil discutir isso sem conhecer o que está acontecendo com a segurança pública neste Estado, mas o que sabemos de maneira geral é que a polícia civil do nosso Estado e de outros está padecendo de uma falta de pessoal e isso tem prejudicado de uma maneira geral o funcionamento das delegacias de polícia.
Este é um problema de gestão. E isso afeta, obviamente, as delegacias da mulher. Como eu dizia antes, temos delegacia que funciona de maneira muito precária. Precisamos pensar seriamente sobre isso. Há sempre o medo de que ao dizer que temos de rever a estrutura das delegacias da mulher, dê munição ao inimigo e diga então pode fechar porque não está funcionando.
Mas acho que se temos um compromisso sério com esta política, temos de assumir este risco, contribuir e avaliar junto com a polícia se todas as delegacias que hoje estão abertas devem continuar e o que podemos fazer para melhorar. Pensar seriamente qual impacto que o fechamento da delegacia vai ter para as mulheres, não somente daquele município, mas da região, e até pensando na delegacia como impulsionadora de outras políticas e campanhas locais.
Tentando entender quais são as limitações que estas políticas estão vivendo atualmente no estado. A gente pode de fato unir esforços para que as delegacias tenham um papel de destaque, tenham o reconhecimento que merecem por serem a primeira política pública que tivemos neste País.

FEAAC - Um dos pedidos das trabalhadoras em Encontro Estadual foi à abertura das Deams (Delegacias especializadas de atendimento á mulheres) aos finais de semana e feriados. Você acha possível isso?
WP - Ligando com a pergunta anterior, é uma demanda que se pode fazer, mas temos de pensar qual é a condição que a secretaria de segurança pública tem para responder a esta demanda, seja para alteração de plantão ou para a criação de novas delegacias. E direcionar este nosso desejo de atendimento às mulheres para ampliação de outros serviços.
Raramente se cobra de um município a abertura de um centro de referência de atenção às mulheres e, no entanto, o centro de referência é um órgão central na organização das políticas públicas. É o centro que dissemina, realiza campanha, orienta e acolhe as mulheres, que pode sediar um serviço telefônico de orientação para as mulheres.
Este é o papel do centro de referência que ainda está, em nossa compreensão sobre as políticas de enfretamento da violência contra a mulher, em um lugar muito secundário, quando na verdade tem de ser trazido para o primeiro plano.
Então, quando se abre este tipo de centro cria-se também possibilidades de diálogo entre este governo municipal e políticas de segurança pública, que são atribuições do Estado, porque o papel do centro de referência é ser o articulador.
Isso também contribui na justiça, uma política de Estado e não de município. Portanto, por que não direcionar estas nossas demandas para outros serviços que podem ser tão ou mais importantes do que simplesmente a abertura de uma delegacia da mulher, quando o centro de referência poderia dar atenção mais imediata, inclusive de maior acolhimento para esta mulher?
A situação fica centrada na criminalização, na punição do agressor, mas temos de pensar na situação da mulher, para que ela não tenha somente a resolução imediata. As vítimas de violência devem ter atendimento em longo prazo para não sofrer ainda mais física e psicologicamente.
É o processo que chamamos de ‘empoderamento’ das mulheres que corre quase paralelamente ao processo judicial, digamos assim. Mas não necessariamente ligado ao processo judicial, porque a mulher faz a ocorrência e o agressor, eventualmente, vai ser punido. Mas até ocorrer isso vão se passar anos, nenhuma decisão sai antes de dois anos, para ser otimista.
E nestes dois anos, o que esta mulher faz? Continua vivendo com o agressor, sofrendo novas violências, registrando novas ocorrências, tendo novos processos que estão tramitando na justiça? É este tipo de resposta que a gente está dizendo para a mulher que ela pode ter.
Quando dizemos “mulher, denuncie a violência”, deve ser no sentido de torne-a pública, busque ajuda institucional. Mas para que as mulheres façam isso, precisamos lutar para que os outros serviços existam e eles de fato não existem.
Em todo o País temos 160 centros de referência de atendimento à mulher, cerca de 470 delegacias e serviços não visualizados por falta de publicidade, divulgação. Portanto, é legítimo ter uma demanda desta, mas temos que trabalhar junto a esta demandantes toda esta problematização que estou colocando e outras para mostrar que esta política de criminalização da violência contra a mulher, abertura de delegacias da mulher, aplicação de dispositivos da Lei Maria da Penha não podem se dar apenas na chave da punição, da segurança pública e da resposta judicial.
Também temos que aprender a lidar com o tempo da mulher, aprender a lidar com isso no interior das políticas públicas. As políticas têm os seus tempos determinados de respostas, mas as mulheres também têm o seu tempo para percorrer estas políticas públicas.
Hoje, já vemos a mulher indo até a delegacia e fazer a denúncia, sabemos que isso não do tipo ‘bateu agora e denuncie amanhã’. Sabemos que muitas vezes a mulher passa por uma rotina de violência, vive sob ameaça e é violentada de toda forma, até que resolve fazer a denúncia.
Temos de respeitar o momento da mulher porque a última decisão cabe a ela, é a vida dela. E se nós queremos que estas mulheres construam e conquistem a sua autonomia, podendo exercer o seu direito de cidadania, de viver sem violência, temos de respeitar.
Estamos indo pelo caminho certo na medida em que não paramos de discutir este tema, colocando atenção concentrada sobre a aplicação da Lei Maria da Penha e sobre as políticas de monitoramento, avaliando o que e como precisa ser feito. Além disso, precisamos exigir e cobrar cada vez mais das instituições, que divulguem os seus dados, que mostrem o trabalho realizado, que assumam a transparência também como parte desta política.
Temos de reconhecer que a Secretaria de Políticas para Mulheres é a grande impulsionadora deste processo, é a grande conquista deste País, além da Lei Maria da Penha.
Agora tudo isso que a gente discute sobre a violência contra a mulher, podemos discutir também em relação a outras políticas sociais, voltadas a outras minorias políticas com relação à criança, ao idoso, à discriminação racial, homofobia.
Temos de pensar o quanto esta categoria que a gente trabalha, de gênero que coloca a atenção nas mulheres, o quanto também ela é transversal em relação a estas outras relações de direitos e na constituição destas outras políticas porque na verdade tem que fazer com que esta teia fique cada vez mais adensada porque temos que dar atenção aos cidadãos.

Wânia Pasinato - socióloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP)
http://www.feaac.org.br/entrevistas/1646-qtemos-de-ter-uma-rede-de-servicos-especializados-para-que-a-mulher-conheca-mais-sobre-os-seus-direitosq

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