O que vale um corpo social
por Amelia Gonzalez
Em fevereiro estive na Maré, a convite da Espocc (Escola Popular de Comunicação Crítica), para bater um papo com os alunos de um dos cursos. Jovens, na maioria, queriam saber o que é sustentabilidade e como a mídia foca o tema. Foi um dia que vivi sensações intensas. Primeiro, com a quantidade de viciados em crack que se avizinham por ali. Segundo, com a turma e com todo o trabalho feito pela Espocc, via Observatório de Favelas. Cheguei em casa e escrevi o texto abaixo no meu ex-blog. Resolvi reproduzi-lo neste espaço por conta das notícias que chegam da Maré e porque soube, via redes sociais, que a Espocc ontem teve que suspender as aulas. Tomara que o trabalho só tenha dado um tempo, até a onda de violência passar. Tomara que a gente não precise abrir mão de coisas tão boas por conta (ainda!) da barbárie de alguns.
O menino entrou na birosquinha com cara de sono. Aparentava cerca de 12, 13 anos e estava sem camisa. Pediu um copo de água mineral, foi atendido na hora pela senhora que parou de buscar, para mim, o biscoito que pedira. Ele não pagou, eu estranhei. Peguei meu biscoito e fui embora. Lá fora uma música em som alto se misturava ao falatório de alguns homens que tomavam sua cerveja num outro barzinho, provavelmente porque já estavam chegando do trabalho, eram mais de 18h. Eu estava na Favela da Maré, ainda não pacificada. Voltei ao prédio do Observatório de Favelas para a segunda conversa com um grupo de jovens a convite da Escola Popular de Comunicação Crítica (Espoc) que está desenvolvendo ali um curso de Publicidade Afirmativa.
Não é a primeira vez que entro uma favela, é claro, porque a minha profissão sempre me exige estar em todos os lugares. Mas ali eu estava com uma outra proposta. Não precisava sair perguntando coisas às pessoas para escrever reportagem. Bastava respirar e sentir o local. Foi diferente de todas as outras experiências que tive.
Vamos voltar à história do menino que pediu o copo de água e foi logo atendido. Mais tarde, conversando com algumas pessoas da Espocc, eu descobri que os viciados em crack costumam pedir mate ou água porque aquele copinho de plástico é uma ferramenta para que eles possam consumir a droga. O menino de cerca de 12 anos com cara de sono e sem camisa que eu havia visto era então, salvo todos os enganos, um viciado em crack . E não era o único por ali. Com a intervenção da prefeitura em dois outros lugares onde os craqueiros se reuniam perto da Maré, eles agora ficam ali, bem próximo da entrada da favela. Um bando de pessoas que moram nas ruas e usam a droga para suportar os trancos de viver ao léu. Plásticos pretos tapam seus esconderijos, mas é a céu aberto que eles manipulam a pedra que vai levá-los, sabe-se lá por quanto tempo, a um mundo sonhado, imaginário. O mundo das TVs de plasma, dos sofás, do conforto de uma casa. Impotentes, buscam na impossibilidade, na transcendência, aquilo que não conseguem e vão machucando seus corpos, sem se dar conta de que estão acabando com a única verdadeira ferramenta que têm para estar nesse mundo. Deixaram-se envolver por promessas. Agora, quem prometeu não quer chegar perto daquele bando desgraçado que só faz enfeiar o tal mundo ideal.
Pode ser estranho, mas quando passei de carro mais tarde, já noite e chovendo, pelo grupo de pessoas em seus plásticos pretos, lembrei-me dos beduínos. Estive certa vez no deserto de Neguev, em Israel, e os vi de dentro do ônibus de turismo que nos levava a algum lugar. Os mesmos plásticos de cor preta se sobressaíam diante daquela paisagem de areia. As condições de vida dos beduínos não é ideal, vivem também com muita privação porque, povos nômades que sempre foram, hoje estão sedentários, também são excluídos do sistema, vivem de pequenos roubos, têm dificuldades. A grande diferença entre esses dois bandos é que os beduínos não massacram seus corpos com a química que os traficantes vendem por centavos aos miseráveis que vão até eles implorar a droga.
Na favela, já se sabe. Até uma determinada hora, os craqueiros não perturbam ninguém porque estão sob o efeito da droga. Quando a pedra de crack acaba, eles passam a importunar, pedindo dinheiro, água ou mate. É melhor dar, dizem. Nunca se sabe o que pode um corpo sem controle.
Com todo esse pano de fundo, essa tristeza de vida, surge como uma flor no deserto aquele canto do Observatório. Passei ali de 14h às 20h30m, conversei com duas turmas, e saí de lá alimentada. Os jovens têm chance de conviver com pessoas que levam até eles noções importantes de vida profissional. E não são poucos os que abraçam esta causa com integridade. Para chegar ali não é fácil, e infelizmente poucos alunos membros da Espocc moram na Maré. Perto do ponto de ônibus ficam os craqueiros, é preciso passar por eles. Mas, em algum momento, aquela cena vira rotina, não mete medo. O importante é estarem ali, tentarem desdobrar a página, escrever uma história diferente para suas próprias vidas. Apoderar-se de seus corpos e alimentá-los com estudo, conversa, filme, contato, muito contato.
Falei bastante nas duas aulas. Mas fui motivada pelos olhares curiosos, atentos, que acompanhavam meus movimentos, não me deixavam pensando sozinha. Senti ressonância. Citei livros, documentários, e eles anotaram tudo. Vão dar um jeito, fazer um ratatá, para tentar comprar em grupo, ler em grupo, assistir em grupo. É possível.
A Petrobras ajuda o Observatório, e parece que outras entidades estão entrando agora no rateio. É preciso mesmo, mais e mais. Que venham as empresas mostrarem assim a sua responsabilidade social. Que as empresas ajudem outras instituições que, verdadeiramente, levem aos jovens das favelas a possibilidade de estudarem, não de serem laçados por um dogma ou religião que talvez os leve à mesma impotência daqueles que buscam na droga a transcendência. A causa é nobre quando bem aproveitada. O Observatório serve como uma linha divisória entre o mundo possível, de jovens que desdenham das condições adversas que o sistema econômico lhes deixou e partem em busca de seu próprio caminho, sem precisarem ser do contra, sem serem movidos por ressentimentos, e o mundo do crack. Um limite tênue fisicamente, mas um enorme território de distância quando se fala em potência.
Nos momentos em que pude dividir com eles meus pensamentos, busquei justamente trilhar um trajeto não maniqueísta. “Não estamos aqui procurando eleger heróis nem condenando bandidos”, disse eu. E eles aplaudiram com os olhos. Porque ninguém aguenta mais tanta necessidade de se escolher entre isso ou aquilo.
A rua que ladeia o Observatório não tem a largura para deixar passar ali dois carros, é cheia de gente, barraquinhas, pequenas lojas que expõem suas roupas em modelos de gesso às vezes sem um braço. Mas é um espaço de convivência, num mundo real, de aceitação das diferenças sem precisar que elas sejam mediatizadas. Gostei quando fui apresentada, pela professora Monica Rodrigues, como uma pessoa que estuda os filósofos da diferença. E peço emprestado aqui a Gilles Deleuze (“Diferença e Repetição”, editora Graal), um pensamento de Hegel que ele reproduz em seu ensaio: “Quando se leva suficientemente longe a diferença entre as realidades, vê-se a diversidade tornar-se oposição e, por conseguinte, contradição, de modo que o conjunto de todas as realidades se torna, por sua vez, contradição absoluta em si”. É para ser lido com as vísceras, não é para ser entendido com a razão…
São questões que andam povoando a minha cabeça e compartilhos com vocês neste espaço onde se pretende debater sobre um mundo sustentável, um novo modelo civilizatório. O filósofo Spinoza diz que um corpo é feito da relação com outros corpos e que, dependendo dessa relação, o sujeito pode ser mais ou menos triste, potente, vigoroso. Quando vejo aquela reunião de corpos em torno do crack (fiquei sabendo na favela que em outras comunidades os traficantes já andaram botando uma faixa para dizer que não vendem crack, os miseráveis, depois de tanto viciarem os pobres coitados) , penso em Spinoza. Penso naquela relação, naquela busca de contato, que mais enfraquece do que fortalece. Será?
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