Efeitos colaterais da 'cura gay'
JAIRO BOUER - O Estado de S.Paulo
Na última semana, enquanto em uma decisão histórica a Suprema Corte dos EUA derrubava a lei que proibia o governo federal de reconhecer matrimônios entre pessoas do mesmo sexo, um triste balanço divulgado aqui pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH) revelava um aumento de 46,6% nos casos de violência física, psicológica e discriminação contra homossexuais no Brasil em 2012. As vítimas mais frequentes foram homens jovens e gays, com idade entre 15 a 29 anos.
Na América, o presidente Barack Obama comemorava o resultado, que garante mais igualdade e benefícios para os casais do mesmo sexo. Uma semana antes, em meio à tempestade de protestos e manifestações que só cresciam no Brasil, o deputado e pastor evangélico Marco Feliciano (PSC-SP) festejava a aprovação do projeto conhecido como "cura gay" (PDC 234/11) na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, que é presidida por ele. O projeto ainda precisa passar pela Comissão de Seguridade e pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania para ir a plenário, o que se espera que não deva acontecer.
A última semana foi também de algumas vitórias importantes das manifestações populares: queda do valor nas passagens de ônibus em diversas cidades, a rejeição da PEC 37 quase por unanimidade, corrupção sendo votada como crime hediondo e a promessa do passe livre para estudantes, entre outras. As ruas catalisaram mudanças rápidas em questões que pareciam estagnadas na pasmaceira que se instalou no País. Ao mesmo tempo protagonista e vítima de conchavos, alianças imobilizadoras e apego excessivo aos privilégios e poderes, nossa classe política tem amargado sucessivos fiascos. Um deles é Feliciano na presidência dessa comissão e a aprovação, sob seu comando, do projeto da "cura gay".
A questão central é que algumas dessas bizarrices podem culminar em mensagens de intolerância, preconceito e discriminação contra homossexuais, negros e mulheres, o que só aumenta a violência no País.
Não há como redirecionar (ou "curar") a orientação sexual de ninguém. Primeiro, porque homo ou bissexualidade não são transtornos ou doenças. São simplesmente variações possíveis do afeto e da sexualidade do ser humano. Depois, porque um suposto tratamento é absolutamente inócuo: um método sem resultados práticos ou comprovação da ciência. Pode dar choque, apertar os testículos, amputar clitóris, aplicar hormônio, criar estímulos aversivos, fazer lavagem cerebral (pasme, mas esses métodos medievais foram utilizados ao longo da história!) que a orientação sexual não muda. Da mesma forma que quem é baixo não vira alto, quem é branco não vira negro, gay não vira heterossexual, assim como heterossexual não vira gay. Cada um é o que é!
Nos primeiros anos de qualquer curso na área de saúde, aprendemos que nosso papel é ajudar, tratar, aliviar o sofrimento e curar, quando possível. A nós, não cabe julgar ou avaliar condutas e atitudes. Não é de nossa atribuição dizer se é certo ou errado o que um paciente faz, pautando essa avaliação em nossas crenças pessoais, religiosas, morais, éticas, políticas, etc. Da mesma forma, não deveria caber a um político tomar decisões que estão fora da sua alçada, baseado em suas convicções próprias, que não refletem os anseios da maior parte da população.
Com base em evidências científicas e com a progressiva dissociação da medicina e da psicologia das questões culturais e religiosas desde meados do século passado, a Organização Mundial da Saúde e, no Brasil, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) proibiram charlatães e fanáticos de tentar converter gays em heterossexuais, em curar o que não é doença por meio de supostos tratamentos "normatizadores" do comportamento sexual. Além de perpetuar um sofrimento desnecessário à pessoa, essas tentativas não levam a lugar nenhum. Terapeutas, médicos e psicólogos de orientação religiosa (seja ela qual for) têm de aprender a separar suas crenças da vida do paciente. Não faz o menor sentido reverter a resolução do CFP, em vigor desde 1999.
No momento em que os jovens saem às ruas para tentar mudar o que está errado, para pensar em um Brasil mais justo, é inadmissível tolerar que uma conduta política, pautada por supostas crenças pessoais e religiosas, determine rumos e decisões sobre o que é absolutamente particular na vida de cada um.
JAIRO BOUER É PSIQUIATRA E TRABALHA EM SAÚDE E PREVENÇÃO
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