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quinta-feira, 27 de junho de 2013

O inferno na beira da estrada

Um casal brigando em língua estranha lembra que a infelicidade é universal


IVAN MARTINS

IVAN MARTINS É editor-executivo de ÉPOCA (Foto: ÉPOCA)
O casal de alemães no quarto ao lado não para de brigar. São dez horas da noite e eles estão assim, param e voltam a bater boca, desde que entramos no hotel, por volta das três da tarde. Não sei a idade que eles têm, não vi a cara deles, pelas vozes percebo apenas que são um homem e uma mulher, e parecem estar com raiva um do outro. Muita raiva. Como eu não entendo mais que três palavras em alemão, e sou incapaz de distinguir sotaques, talvez eles sejam austríacos ou suíços em vez de alemães, mas certamente são um casal e, mais que certamente, estão furiosos um com o outro. 

Minha experiência sugere que há dois tipos de casais que brigam o tempo todo: os muito jovens, que não sabem que não precisa ser assim, e os mais velhos, que escolheram viver no inferno. Entre um e outro extremo, há milhões de pessoas que sabem ou intuem que é obsceno viver às turras, mas ainda têm medo de procurar para si mesmo um tipo menos doente de relacionamento.

Casais que brigam - sejam namorados, cachos ou marido e mulher - vivem uma forma particularmente pavorosa de prisão. Estar com a pessoa que você escolheu, afinal, deveria ser um descanso do mundo exterior. Todos os dias somos obrigados a sair da cama e lidar com pessoas e situações que preferiríamos evitar, mas não podemos. No fim do dia, ninguém merece voltar para casa (ou ir ao encontro de alguém), cheio de pedras na mão, armado de ira e de impaciência, pronto para seguir lutando. Mas é assim que acontece. 

Dia após dia, milhões de pessoas retornam para a companhia de gente com quem sabem, antecipadamente, que irão discutir. Inventam para si mesmas desculpas românticas - ela é a mulher da minha vida, ele é meu grande amor - quando, na verdade, são apenas prisioneiras de seu desejo de sofrer e fazer sofrer, de maltratar ser maltratado. Há prazer nisso, de uma espécie que as pessoas não comentam em público, mas existe. E medo também, sobretudo de não ter com quem brigar. 

Os alemães ao lado estão viajando em férias. Hospedaram-se num hotel barato, à beira de uma estrada turística na Califórnia. Os dois deveriam estar transando, lendo ou vendo TV, relaxados. Em vez disso, discutem. A emoção em que estão envolvidos, imagino, é uma espécie de droga. Quanto mais usam, pior as coisas ficam, pior cada um deles se sente. Isso justifica a necessidade de brigar ainda mais. Visto de fora, é apenas uma tentativa barulhenta e chata de suicídio emocional. De dentro, talvez pareça uma forma justificável de lutar pelo amor, pelo casamento, pelos filhos, pelo patrimônio do casal, sabe-se lá por quê.

Quem já esteve preso nessa armadilha sabe como é. Os momentos de fúria tornam-se banais e os momentos de ternura são cada vez mais raros. Eles se confundem com o sexo. Transar vira um exercício desesperado de aproximação, intercalado por intervalos cada vez mais longos de indiferença. É um sexo triste mas intenso. Raro mas marcante. Anos depois, quem participou dessas orgias de melancolia ainda vai associar sexo e raiva, sexo e dor, sexo e a sensação assustadora de que a vida não tem saída. Mas tem.

Os alemães do quarto ao lado ainda não descobriram, mas a porta do hotel deles dá para uma estrada que leva para longe dessas tristezas repetidas em que eles estão metidos. Entrar nelas exige alguma determinação, quem sabe um empurrão, talvez alguma sorte. Mas vale a pena.  

Depois desses infernos conjugais, as pessoas experimentam verdadeiros renascimentos. Elas redescobrem sentimentos perdidos, doçura represada, amor, prazer, beijos no escuro e cumplicidade. Perguntam-se como puderam suportar por tanto tempo. Lamentam não ter agido antes, felicitam-se por terem se mexido. Percebem, tempos depois, que escaparam da morte. Não daquela definitiva, iniludível, mas de uma outra, igualmente escura, que cerca quem desistiu de ser feliz. Quem apenas vive entre uma briga e outra, entre uma semana e outra, entre um salário e outro. Quem vive apenas, infeliz.  

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