Em 17 de março de 2015, foi sancionada a Lei nº 13.106, alterando o tipo do art. 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente e criando um novo tipo administrativo: o art. 258-C. O objetivo desse estudo é analisar de forma sucinta, essas duas modificações no Estatuto da Criança e do Adolescente e de citar nossos estudos anteriores e críticas anteriores à entrada em vigor dessa nova lei. Além disso, repetiremos a apresentação formal dos tipos.
II – A nova infração administrativa do art. 258-C do Estatuto da Criança e do Adolescente
A Lei nº 13.1006 previu expressamente como infração administrativa, a conduta de vender bebida alcoólica, ao se referir ao art. 81, II, do ECA. Anteriormente, já existiam julgados inadmitindo a similitude com o art. 258. Veja nesse sentido: TJRJ – Apelação 632/93; Apelante: J. E. O. – L. Bar; Apelado: Juízo da Infância e da Juventude de Nova Friburgo; recurso provido, v. u., Rel. Américo Canabarro. E sob esse aspecto, já assinalávamos em nosso ECA, doutrina e jurisprudência o seguinte: “Sob o aspecto técnico e de acordo com o princípio da legalidade e da tipicidade, verificamos que o art. 258 cuida, somente no seu primeiro verbo, do acesso de criança e de adolescente aos locais acima mencionados que necessitam de um efetivo controle pelo Poder Judiciário. Assim, a título de exemplo, um bar, livre da exigência de alvará ou de disciplina por portaria, flagrado pelo serviço de voluntários pela venda de bebida alcoólica, responderia pela infração do art. 258? A resposta parece-nos negativa. Com efeito, consoante já assinalamos, o tipo somente torna ilícita a conduta que desrespeita a normatização sobre o acesso à diversão. Se determinado lugar não está adistrito a essa disciplina, não responderá pela infração. A adoção entre nós do princípio da legalidade leva à exigência de um preceito secundário exibindo a sanção a ser aplicada, hipótese não contemplada pelo art. 81, II, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Seria necessário que o legislador tipificasse a conduta do art. 81, II dentre as infrações administrativas, cominando a necessária sanção correlata. Diferentemente ocorre em festas denominadas open bar em que se exigiria alvará pela presença de menores. Nesse caso, a falta do alvará tipifica administrativa a conduta somada à presença de adolescentes onde há fornecimento de bebidas alcoólicas à vontade, caracteriza a infração do art. 258 (TJSP, Ap. nº 00735-4.2013.8.26.0627, Teodoro Sampaio, Rel. Marcelo Gordo, j. 31-3-2014).”Portanto, sob esse ponto de vista, haveria necessidade de tipificação administrativa específica, vindo em boa hora o art. 258-C. Passemos à análise da estrutura do tipo administrativo.
Sujeito ativo. É infração administrativa própria, sendo sujeito ativo o proprietário, gerente ou funcionário que venda bebida alcoólica a criança ou adolescente, desobedecendo a regra do art. 81, II do ECA. Note-se que a norma administrativa possui um âmbito menor do que o atual crime do art. 243, pois aquela só abarca a conduta de “vender”. Ressalte-se que inexiste a vedação do “nes bis in idem” porquanto trata-se de norma administrativo ao passo que a norma do art. 243 é de natureza penal. Sujeito passivo. É a criança ou o adolescente que adquire a bebida alcoólica. Tipo objetivo. É infração administrativa comissiva, pois exige uma conduta comissiva de “vender” bebida alcóolica a criança ou adolescente. O conceito de bebida alcoólica pode ser extraído do anexo I, item III, 5 do Decreto 6.117/2007:“Para os efeitos desta Política, é considerada bebida alcoólica aquela que contiver 0.5 grau Gay-Lussac ou mais de concentração, incluindo-se aí bebidas destiladas, fermentadas e outras preparações, como a mistura de refrigerantes e destilados, além de preparações farmacêuticas que contenham teor alcoólico igual ou acima de 0.5 grau Gay-Lussac.”Tipo subjetivo. Como ilícito administrativo, exige-se apenas a voluntariedade da conduta omissiva de vendar bebida alcoólica a menor de dezoito anos. Dessa forma, pertencendo ao direito administrativo sancionador, não se admite p. ex. o erro de tipo (pensar que se tratava de maior de dezoito anos) ou do erro de proibição (o agente pensava que no seu caso específico, diante das circunstâncias e da conivência das autoridades, que seria lícita a venda). Não se exige portanto, o dolo e nem a culpa. Consumação. Consuma-se com a venda, sendo infração instantânea. A tentativa é possível, embora não seja punível. Sanção administrativa. Em razão do escopo de se evitar a defasagem do valor, a multa foi fixado um valor mais elevado de R$ 3.000,00 a R$ 10.000,00, mas que diante da espiral inflacionária, tornar-se-á paulatinamente defasado. O critério eleito pelo legislador demonstra a tendência em se fixar a multa administrativa em reais, ao contrário do nosso entendimento de se fixar em salários mínimos, para evitar essa defasagem.
III – A inclusão do fornecimento de bebida alcoólica ao tipo penal do art. 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente:
A lei n. 13.106/2015 também “criminalizou” a conduta de fornecimento de bebida alcoólica a criança ou adolescente com o seguinte tipo: “vender, fornecer, ainda que gratuitamente, ministrar ou entregar, de qualquer forma à criança ou adolescente, bebida alcoólica ou, sem justa causa, produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica.” Colocamos entre aspas a expressão “criminalização”, pois já defendíamos em nosso “ECA, Doutrina e Jurisprudência” que o tipo já contemplava essa hipótese. Em edições anteriores, já mencionávamos:“Assim, restaria a indagação se a conduta seria contravenção ou crime do art. 243 do ECA. De início, o entendimento dominante seria de que o tipo do art. 243 abrangeria tão somente as denominadas substâncias semelhantes às entorpecentes, mas que não foram abrangidas pelo art. 33 da Lei nº 11.343/06. Haveria um caráter residual. Numa evolução, passou-se a admitir qualquer produto que possa causar dependência física ou psíquica, incluindo a bebida alcoólica (TJRS, RCR 70000694661, Rel. Carlos Cini Marchionatti, j. 27-7-2000). Nesse diapasão, a norma do art. 243 do ECA, por abranger completamente a conduta do art. 63, I, da LCP, revogou a mesma (Edson Miguel da Silva Júnior,Servir bebida alcoólica para menor de dezoito anos: crime ou contravenção?, in ). Ressalte-se que existe entendimento de que os produtos a que alude o art. 243 seriam o do art. 81, III, excluindo-se a bebida alcoólica referida no art. 81, II, continuando a subsistir a norma contravencional (STJ, RHC 28.689-RJ, Rel. Min. Celso Limongi, j. 5-5-2011; REsp 331.794-RS. Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 25-2-2003, REsp 942.288 – RS, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 28-2-2008; TJMS, Processo: 2010.006409-8, j. 23-3-2010). No mesmo sentido, TJSP, Apelação 990091573329, j. 7-1-2010). Não compartilhamos desse entendimento, porque a restrição quanto à taxatividade do tipo penal deve ser feita não como conjugação de dois artigos (o art. 81 e o art. 243), mas com base única e exclusivamente no tipo penal: o art. 243. Neste, o intérprete deve buscar o conceito de produto cujo componente possa causar dependência física ou psíquica, não se verificando como a bebida alcoólica possa ser excluída do mesmo. Admitindo como crime do art. 243, mesmo sem laudo pericial, o fornecimento de bebida alcoólica: TJMG, Número do processo: 1.0372.07.027010-6/001(1), j. 2-2-2010, Data da Publicação: 16-4-2010). Também admitindo como delito do art. 243: Cláudia Canto Condack, Curso de direito da criança e do adolescente, p. 936. A própria Lei Estadual de São Paulo 14.592, de 19 de outubro de 2011, ressalta em seu art. 2º, inciso II, o art. 243 do ECA ao se referir ao fornecimento de bebida alcoólica aos menores de 18 (dezoito) anos de idade.” E ainda ressaltávamos em nosso livro sobre a venda de bebida alcoólica: “para a jurisprudência dominante, contravenção prevista no art. 63 da Lei das Contravenções Penais, porém não constitui infração administrativa, por falta de previsão dentro do rol de infrações administrativas.” Também em outra parte do livro, também assinalávamos: “Outrossim, predomina o entendimento de que não se trata de crime do art. 243 do ECA que se refere à venda de substância que possa causar dependência física ou psíquica. Isso porque o legislador no referido art. 81 posicionou a venda de bebida alcoólica e das substâncias que causam dependência física ou psíquica em incisos diferentes. Assim, o art. 243 se refere especificamente ao inciso III. Contudo, conforme explicitamos melhor no art. 243 infra, entendemos que a venda caracteriza crime do ECA e não simples contravenção.” Assim, diante de tantas justificativas para não admitir o fornecimento de bebida alcoólica como crime, foi necessária a inclusão pela Lei n. 13.106, de 17 de março de 2015, da bebida alcoólica no tipo penal do art. 243 da Lei Menorista.
Passemos à análise do seu novo tipo penal. Objetividade jurídica. Tutela-se a integridade física e moral da criança ou adolescente. Note-se que tutela-se um bem individual, pois a conduta é dirigida diretamente a uma criança ou adolescente especifica, não se tratando de um bem coletivo. Assim, existirá o crime mesmo se uma bebida alcoólica possua um baixo teor alcoólico e o adolescente esteja acostumado a ingerí-la. Sujeito ativo. Sujeito ativo é qualquer pessoa que venda, forneça gratuitamente, ministre ou que entregue à criança ou adolescente, bebida alcoólica ou ainda que, sem justa causa, pratique as mesmas condutas, com produtos que possam causar dependência física ou psíquica. Sujeito passivo. É a criança ou o adolescente objeto da entrega de produto que cause dependência física ou psíquica. O tipo portanto, tutela um bem individual: o da criança ou adolescente “x”. Tipo objetivo. Consiste em vender, ou seja, fornecer o produto (apenas um, embora a elementar esteja no plural) a título oneroso; fornecer gratuitamente (concessão sem retorno financeiro); ministrar (receitar a substância); ou entregar: bebida alcoólica. O tipo objetivo não comporta “justa causa”, ou seja, não existe hipótese para o fornecimento justificável ao menor de dezoito anos. (b) qualquer forma de produto que cause dependência física ou psíquica, sem justa causa. Entende-se por dependência física a denominada dependência química, ou seja, o contato da substância entorpecente com os receptores do órgão humano e, consequentemente, com a circulação sanguínea. Já a dependência psíquica é consequência dessa dependência química, que leva o indivíduo a buscar a substância pela sensação produzida. Há a possibilidade de incidir a justa causa, p. ex. quando se fornece produto que possa causar dependência, mas para fins medicinais ou de tratamento. O tipo é misto alternativo, havendo no mesmo desdobramento causal, apenas um crime
Amoldamento técnico dos demais elementos (tipicidade formal). Após anos de vigência do ECA, muito tem-se falado sobre esse tipo, mas não de forma técnica. A fim de se evitar confusão na doutrina e na jurisprudência, vamos esmiuçar o tipo: (1) Expressão “produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica”. Essa expressão deve ser confrontada com a Lei nº 11.343/06. Conceito de droga. É fornecido pelo art. 1º, parágrafo único da Lei nº 11.343/06: “... consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União.” O art. 14, I, a, do Decreto nº 5.912, de 27 de setembro de 2006, determina ser atribuição do Ministério da Saúde a publicação de listas atualizadas. Para se evitar interpretação errônea, o próprio art. 66 da Lei nº 11.343/06 já remete para a Portaria SVS/MS nº 344, de 12 de maio de 1998. No caso, as substâncias catalogadas como “drogas” estão mencionadas no anexo I da referida portaria. 1ª consequência: toda substância catalogada como droga é sujeita à lei de drogas. Portanto, todas as substâncias mencionadas na referida Portaria remetem à Lei de Drogas. Trata-se de norma penal em branco em sentido estrito. O art. 243 não é norma penal em branco porque não depende de nenhuma complementação de algum órgão. Há produtos que mesmo podendo causar dependência, não foram catalogados pelo Ministério da Saúde. Trata-se de um critério discricionário do administrador. Exemplos: a cola de sapateiro e o loló não são catalogadas como “drogas”. Nesse caso, deve-se fazer uma segunda análise abaixo explicitada. (2) A conduta ilícita (verbo) se destina à criança ou adolescente. Nesse caso, não estando catalogada na Portaria e destinando-se à criança ou adolescente, o crime é do art. 243 do ECA. Portanto, é errada a afirmação de que a norma do art. 243 é norma penal em branco, pois não depende de nenhuma complementação. Depende da realização de perícia que abaixo será mencionada. Pode, eventualmente, ser disciplinada pela ANVISA. Porque uma coisa é a obrigação em estabelecer o que é droga e outra coisa é a faculdade de disciplinar a matéria. No primeiro caso, a falta da norma complementar torna inaplicável o tipo penal. No segundo caso, não. Neste segundo caso, existe o exemplo da cola de sapateiro. A partir de 15-6-2006, a venda de cola de sapateiro e substâncias que afetam o SNC – sistema nervoso central somente poderão ser adquiridas por maiores de 18 anos. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) editou a Resolução 345, com especificações para controle da mesma, como: controle individual para cada uma das embalagens e assinatura do comprador, data da venda, nome do estabelecimento e o número de controle do produto vendido. (3) A conduta não se destina à criança ou adolescente. Nesse caso, a última ratio ou a subsidiariedade da subsidiariedade é o amoldamento ao tipo do art. 278 do CP: “Fabricar, vender, expor à venda, ter em depósito para vender, ou, de qualquer forma, entregar a consumo coisa ou substância nociva à saúde, ainda que não destinada à alimentação ou a fim medicinal: Pena – detenção de um a três anos, e multa.” Nesse sentido: “Habeas corpus – objetivo: liberdade do paciente e trancamento da ação penal – Concessão de liberdade provisória – Prejudicialidade do pedido quanto a soltura do paciente – Denegação da ordem em relação ao trancamento da ação penal – Tráfico de entorpecentes – Apreensão de grande quantidade de substância conhecida como loló. Inexistência de laudo definitivo concluindo não ser a substância apreendida de natureza entorpecente – Afirmação da inicial de ser conduta do paciente adequada ao tipo do art. 278 do Código Penal. Atipicidade inexistente. Justa causa para a ação penal. Denegação da ordem o Prosseguimento da ação penal” (TJRN, Tribunal Pleno, HC Rel. Des. Aderson Silvino). (4) Laudo de exame de corpo de delito. Em todos os delitos, é necessário, mas para o art. 243 do ECA e do art. 278 do CP, é indispensável, não podendo ser suprido pela prova testemunhal. Todavia, é simples: basta a apreensão da substância, a coleta de uma amostra e o perito responder afirmativamente a um quesito: o produto pode causar dependência física ou psíquica? Nesse sentido: “No entanto, conforme asseverado na sentença recorrida, a materialidade deste delito não restou comprovada, eis que o laudo de fl. 65, apesar de atestar a natureza da substância apreendida, qual seja, CLOROFÓRMIO, nada diz sobre a nocividade de referida substância à saúde, o que torna imperativa a absolvição do apelante” (TJRN, ACR 91992 RN 2010.009199-2, j. 11-1-2011). Admitindo como crime do art. 243, mesmo sem laudo pericial, o fornecimento de bebida alcoólica: TJMG, Número do processo: 1.0372.07.027010-6/001(1), j. 2-2-2010, Data da Publicação: 16-4-2010). (5) “Ainda que por uso indevido”. Essa é um expressão redundante, suprimida corretamente pela Lei n. 13.106, de 17 de março de 2015. Toda utilização de álcool ou qualquer outro produto por criança ou adolescente, é indevido, inapropriado, fora do regramento jurídico. Casos específicos. Como acima dissemos, trata-se de uma norma residual, subsidiária diante do art. 33 da Lei de Drogas. Abaixo listamos duas hipóteses de incidência: ( 1) O fornecimento de “cola de sapateiro” constitui fato típico do art. 243 do ECA, consoante se extrai de julgado do TACRIM: Ap. 1.171.909/6 – Rel. Corrêa de Moraes – j. 3-2-2000.) (2) Fornecimento de thinner. Está regrado pela Resolução nº 345, de 15-12-2005 (ANVISA) e pelo custo mais baixo, está sendo trocado pelos menores moradores de rua, em prejuízo da cola de sapateiro. O fornecimento de thinner constitui fato típico formal ao delito previsto no art. 243 do ECA.
Finalmente, a Lei n. 13.106, de 17 de março de 2015 revogou expressamente o art. 63, inciso I, do Decreto-lei n. 3.688, de 3 de outubro de 1941 (LCP), para espancar qualquer dúvida acerca da aplicabilidade do art. 243 do ECA à hipótese de fornecimento de bebida alcoólica a menor de dezoito anos.
IV – Conclusões:
Ao contrário de outras leis que normalmente podem atrapalhar a aplicação de um Código (como o do Penal) ou de um Estatuto, as modificações trazidas pela Lei n. 13.106, de 17 de março de 2015 vieram em boa hora. Quanto à infração administrativa, criou um tipo administrador especifico para a venda de bebida alcoólica a menor de dezoito anos, espancando qualquer dúvida acerca da existência de infração administrativa sobre essa hipótese. Na esfera penal, também findou com a discussão anterior sobre a inaplicabilidade do art. 243 do ECA no que concerne ao fornecimento de bebida alcoólica ao menor de dezoito anos. De crítica, tão somente a insistência do legislador em fixar as multas das infrações administrativas em reais, mesmo diante da incidência da inflação no país.
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