Esopo, em uma de suas fábulas, conseguiu estruturar uma pequena e poderosa lição sobre a humildade: “ninguém é tão grande que não possa aprender, nem tão pequeno que não possa ensinar”. Pois bem, dessa singela frase emerge o desafio central e estrutural do Judiciário hoje, qual seja, compreender que seu trabalho se dá no contexto da família e da própria sociedade e que somente em comunhão com ambas, sem se colocar soberbamente acima dos demais, e nem, tampouco, se inferiorizando frente aos demais poderes, conseguirá cumprir fielmente seu papel constitucional de garantia do direito, e mais do que isso, de garantia da justiça.
Nesta senda, ganha destaque, ao lado dos demais sujeito que constituem o marco daquele poder, o desempenho do juiz, mormente porque personifica a missão — nada fácil, diga-se, do Judiciário, recaindo, pois, sobre ele, humano como todos, a responsabilidade de todo um ordenamento. É o juiz, portanto, o vértice que encerra uma relação, sendo essencial no estado da vida (em família e em sociedade) e na vida do Estado. Justamente por isso, compreender o papel do juiz contemporaneamente, na pronunciada sociedade pós-moderna e de hiperconsumo, é mister para que se parta da sociedade que temos, rumo à sociedade que queremos. Por igual, da família que vivenciamos à família que sonhamos.
Sabe-se que o juiz clássico da modernidade, mormente a partir do meado do século XVIII, atuava como verdadeiro guardião do Estado, isto é, era longamanus do Poder conformado em um Estado liberal (no sentido estrito do termo). Nesta senda, o papel do juiz era tão somente dizer a lei (daí a expressão juiz boca da lei) no sentido que não lhe cabia uma verdadeira hermenêutica; apenas uma aplicação legislativa calcada em método eminentemente subsuntivo. Esse conceito mecânico da função jurisdicional, fundamentada teoricamente, principalmente por Savigny e a corrente jusracionalista, se baseava na crença na razão iluminista, em conceitos gerais e abstratos, numa segurança formal e na estrutura formal dos institutos jurídicos. De fato, podia se observar uma verdadeira Síndrome do Barão de Munchausen: a concepção insular do Direito é imagem especular do juiz clássico que fotografa o mundo da vida através da vida das formas jurídicas. Almejava-se, nada obstante, a indispensável segurança jurídica, ainda que formal.
A turbulenta e necessária travessia pelo século XIX estremeceu as estruturas da concepção formalista de direito e, por conseguinte, foi fundamental dar ao juiz um novo papel. Nesta toada, importante observar que as teorias sociais que emergiram naquele momento colocaram em xeque a função do Direito, desvelando seus propósitos dentro do Estado liberal então vigente. Tal realocação do Direito, levando-o para a superestrutura social, ressignificou sua própria legitimação e fez surgir até mesmo novas concepções de Justiça. A partir de Bobbio, já no século XX, a concepção de Direito guinou para um novo caminho, nomeadamente, abandonando a noção da estrutura para chegar à função. Essa mudança paradigmática, ao mesmo tempo em que influenciou o fazer legislativo e o pensar jurídico, alterou sobremaneira e perenemente o papel do juiz no ordenamento jurídico e mesmo na sociedade.
Findada a Segunda Guerra e após a emergência do Estado social, e ainda sob a influência teórica funcionalista iniciada com o Bobbio, o juiz contemporâneo ganhou destaque no direito, na família e na sociedade. Aliado a isso, o paradigma da responsabilidade, outrora forte, abre espaço, mormente a partir das contribuições de Ulrich Beck, ao paradigma da solidariedade, engendrado no conceito de sociedade de risco. Nesta senda, o juiz deixa de ser mera boca da lei, para ser seu intérprete, hermeneuta e aplicador tópico. Dentro do direito e sem fraturar sua unidade, o julgador agora é desafiado pelos fatos concretos e não apenas pelas abstrações e conceitos teóricos.
Nessa complexidade que surge das fissuras da simplificação (como diria Edgar Morin) se revela o novo desafio do julgador na contemporaneidade. Observe-se, entretanto, que não apenas ao juiz se transitou a mudança paradigmática, mas também na legislação. Se, por um lado, o Código de Napoleão era o representante legislativo do Estado liberal, a Constituição de Weimar é o primeiro passo legislativo do Estado social, que acabou por render muitos frutos, como a própria Constituição brasileira de 1988. Assim sendo, toda essa ordem de ideia resulta em um conceito não mais formal, mas sim, substancial de jurisdição, que abraça clausulas gerais e princípios e lhes dá poder normativo. Eis que então o direito passa a ser visto não mais como embate entre partes, mas, sobretudo, como cooperação entre elas, como bem assentou o artigo 241 do BGB (Código Civil alemão, após a atualização de 2002).
Se é certo que hipertrofiaram os dramas e tramas da sociedade, também restou infinitamente mais labirintado o papel do juiz. O juiz Hércules passa a ser cada vez mais chamado para o combate, afinal as peculiaridades do caso concreto não mais permitem a mera subsunção da norma ao fato. No âmbito do Direito de Família, com especial ênfase, parece que a força normativa dos fatos, cada vez mais, toma de assalto o ordenamento jurídico, e é ao juiz que se clama pela dificultosa harmonização de fontes com o fito de dar (umas das) resposta (s) ao quadro que se apresenta. As dificuldades da guarda compartilhada são disso vistoso exemplo. Em verdade, ao mesmo tempo em que se exige o trabalho hercúleo do juiz, a ele muito pouco se oferta, o que torna sua missão ainda mais tormentosa. Dentro do contexto de uma sociedade hipercomplexa e de uma produção jurídica (em todos os sentidos) superlativa, ao julgador recai a tarefa de manter a segurança jurídica possível, isso tudo sem olvidar da vedação ao retrocesso, da devida atenção aos mandados de otimização e dos imperativos de tutela.
Desafios são muitos. Além do resguardo à segurança jurídica, cada vez mais a política se “judicializa” e se pede ao juiz o exercício discutível de políticas públicas de um Estado inadimplente. Nesta senda, a separação entre o ativismo e o protagonismo judicial se faz fundamental para que o Judiciário cumpra com seu papel de garantidor de direitos, sem atropelar os demais poderes. O juiz não pode nem deve tomar, na sociedade, o assento do Prefeito Municipal, nem do casal no exercício do poder familiar. Ainda, recai sobre o juiz a necessária constitucionalização do direito, a aplicação normativa dos princípios, o diálogo com o direito internacional e a abertura do sistema sem que se quebre sua unicidade e com garantia da liberdade, da autonomia e da segurança jurídica.
Por certo, os desafios aqui elencados são só parte de um problema ainda maior, e que os julgadores conhecem bem a dimensão. Neste sentido, se fazmister um juiz presente, que analise com sobriedade direitos e princípios para que não apresente soluções demasiadamente simplistas frente à complexidade dos fatos. Se o conselho que se dava aos juízes antigos da Itália era não use a testa, use o texto, hoje a máxima pode ser reinventada para use a testa, não esquecendo do texto e seu contexto. Fato é que para vencer os desafios que a contemporaneidade impõe, o juiz deve abandonar um pouco a força de Hércules e se pautar mais na comunicabilidade e no diálogo trazidos com Hermes (o deus mensageiro) e, assim, humildemente, e aqui tornando a Esopo, construir com grandes e pequenos as soluções para os problemas reais.
Luiz Edson Fachin é sócio fundador do escritório Fachin Advogados Associados e sócio do Fachin Girardi Escritórios Associados. É pesquisador convidado do Instituto Max Planck (Alemanha) e professor titular de Direito Civil da UFPR.
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