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terça-feira, 21 de abril de 2015

A rua como espaço de aprendizado para todos

Sem muros, uma escola se abre para a comunidade. Em simbiose com os demais equipamentos da região, com a rede de proteção à infância, com coletivos artísticos e organizações sociais, os habitantes desse local se articulam para garantir que a rua seja um espaço de aprendizado para todas as idades. A ideia de que só “os especialistas” detêm o conhecimento cai por terra e as pessoas que ali vivem adicionam suas experiências e saberes na construção de um projeto de desenvolvimento local que começa, mas não termina, no campo da educação. Para além do “Se essa rua fosse minha”, uma proposta: E se esse bairro fosse de todos?
A descrição acima parece um pouco fantasiosa, mas já é realidade em diversas comunidades do Brasil que resolveram assumir sua vocação educativa e converteram-se em Territórios Educativos.
Helena Singer Territórios EducativosCrédito: carloscastilla / Fotolia.com
Mas o que é um Território Educativo?
Para Helena Singer, diretora da Associação Cidade Escola Aprendiz e organizadora da Coleção “Territórios Educativos – Experiências em Diálogo com o Bairro-Escola”, que acaba de ser lançada pela Editora Moderna, é um lugar que atende a quatro requisitos: possui um projeto educativo para o território criado pelas pessoas daquele espaço; agrega escolas que reconhecem seu papel transformador e que entendem a cidade como espaço de aprendizado; multiplica as oportunidades educativas para todas as idades; articula diferentes setores – educação, saúde, cultura, assistência social – em prol do desenvolvimento local e dos indivíduos.

Essa noção é reafirmada por Juarez Melgaço Valadares, docente da Faculdade de Educação (FaE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), para quem o aumento da carga horária das escolas brasileiras tem dado ainda mais relevância para a questão do território. “Não dá para manter esses meninos e meninas na escola por 4, 5, 8 ou 10 horas. Temos que reforçar a ideia de que a escola tem que explorar os espaços da cidade, torná-la educadora e abrir novas possibilidades de aprendizagem.”

Em sua opinião, enquanto local de prática e experiência, o território contempla uma série de saberes que não podem ser desconsiderados pelos espaços educativos em nome da tradição do saber escolar-científico. “Quem conhece a região, domina certos conhecimentos, histórias e culturas. Se você traz a capoeira para a escola, o folclore, esses saberes populares, você tem outros agenciamentos e o jovem é poroso a tudo isso.”

Segundo o professor, a cidade tem espaços que são negados a determinados grupos sociais e que precisam ser ocupados e transformados. Essa relação gera conflitos e antagonismos que poderão ser usados para a transformação de preconceitos e da realidade local. O que funciona para o espaço público, também pode ajudar a escola.

“A vivência do território não se opõe jamais ao saber escolar. São complementares”

“A saída para a escola – e não digo que é fácil – é continuar a educar, no entanto, radicalizando esse conceito: aceitando vivências e entendendo culturas e processos de sociabilidade. A vivência do território não se opõe jamais ao saber escolar. São complementares”, acredita.

Em São Paulo, o Bairro Educador Heliópolis é um exemplo dessa trajetória, ao congregar, na EMEF Campos Salles, uma pedagogia democrática e autônoma com uma profunda ligação com a comunidade e seus movimentos sociais. Foram-se os muros, abriram-se as portas.

Outros bairros da capital paulista, como Centro, Vila Madalena e Jardim Ângela – embora tenham realidades distintas – compartilham a mesma intencionalidade. Pelo Brasil, Salvador, Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte, Nova Iguaçu (RJ) e Sorocaba (SP) vêm realizando suas próprias tentativas de transformar o espaço comum em currículo e já colhem frutos interessantes.

Apesar dos avanços Brasil afora, há muito por fazer quando se fala em Territórios Educativos. Do processo de sensibilização das comunidades e escolas, passando pelos gestores públicos, à incorporação efetiva nas políticas e programas, esse parece ser um dos grandes desafios para a formação de cidadãos autônomos e comprometidos com a democracia no século 21.

Para inspirar bairros, escolas e comunidades, conversamos com Helena Singer sobre o tema. Acompanhe a entrevista:

Que fatores caracterizam um território? E o que o torna educativo?
Helena Singer: Nós identificamos o território como o conjunto de usos que se fazem de um determinado espaço. Já o que o caracteriza como educativo são quatro condições básicas: um projeto para que ele seja educativo, criado pelas pessoas dali em um espaço participativo de construção. Por exemplo, em Heliópolis, existe o Sol da Paz que se reúne a cada ano e define quais são as prioridades do território educador e concilia comunidade e escola.

A segunda condição é que ele tenha escolas que reconhecem seu papel de transformar um território em educativo. Não é central, mas é importante ter uma escola que assume essa vocação e se reconhece com o território, que o vê como campo de pesquisa, currículo, lugar de estudo, que se envolve com as questões locais e propõe a ajudar na sua transformação.

Essa postura da escola fortalece os outros dois elementos: que as oportunidades educativas se multipliquem, com agentes que oferecem espaços de aprendizados não só para crianças, mas também para adultos, ao propor processos permanentes de participação.

E o quarto elemento que é a rede de proteção – formada pela educação, desenvolvimento social, saúde, cultura – que atendem os jovens e se articulam numa perspectiva integrada, buscando alinhamentos comuns para atender as pessoas daquele território e não apenas encaminhando de um serviço pro outro.

Neste sentido, muitas vezes é necessário que haja uma consonância de políticas públicas capazes de dar conta da complexidade de um território. Quais políticas públicas podem incentivar o surgimento e a consolidação de um Território Educativo? Quais sãos os principais desafios nesse campo?
Helena: São aquelas que se desenham de modo intersetorial, como políticas da educação que se constroem em parceria com a cultura, o esporte, o lazer e a comunicação para multiplicar as oportunidades educativas. Claro que a atuação dos coletivos é essencial, mas se o Estado tem uma oportunidade de fortalecer esses âmbitos, o território ganha força. Um bom exemplo são os Pontos de Cultura, que possuem projetos educativos e ficam ainda mais fortes na perspectiva do local onde estão inseridos com o Programa Mais Cultura, que prevê a parceria da escola com o Ponto de Cultura. No campo da proteção, são exemplares as políticas que articulam o conselho tutelar, o posto de saúde e a vara da infância de maneira intersetorial e entendem que o estudante, menino e morador são a mesma pessoa e suas necessidades são vistas de maneira não fragmentária.

O principal desafio é realizar, na prática, essa integração. Um exemplo dessa dificuldade sãos os Centros de Educação Unificada (CEUs), equipamentos que representariam uma política integrada da educação, do esporte e da cultura, mas que enfrentam inúmeros problemas do ponto de vista da gestão, justamente porque a lógica dos setores é fragmentada Por isso, a perspectiva intersetorial deve vir desde o início e pensar o todo da efetivação de uma política.

“O Território Educativo só se consolida se a comunidade estiver com vontade de fazer”

E a comunidade nesse processo?
Helena: Ela é a grande protagonista. O Território Educativo só se consolida se a comunidade estiver com vontade de fazer. Quando falamos em comunidade, a entendemos no sentido amplo, sem excluir a escola, os agentes da saúde, da cultura etc.

De que maneira a escola se torna um agente na constituição de um Território Educativo?
Helena: A escola é um agente quando ela toma conhecimento de quais são as questões sociais e culturais do território e se pergunta: quem são as crianças e os jovens? Como vivem? Qual é a cultura da família? Do bairro?  Qual é o meu papel como instituição primária de sistematização do conhecimento na comunidade? Para mim, esses são os pontos de partida. Ela vai se consolidar como um agente quando a cultura da escola e seu plano de ensino se constroem a partir dessas perguntas.

A Cidade Educadora é a somatória de territórios educativos?
Helena: Não. Uma Cidade Educadora possui territórios educativos, sem dúvida, mas a política urbana como um todo tem que ser pensada numa perspectiva educadora. Isso se dá quando os grandes marcos referencias da cidade, como o Plano Diretor Estratégico e o Plano Municipal de Educação já são concebidos juntos, integrados e em diálogo para que todas as políticas da cidade se desenhem na perspectiva da Cidade Educadora.

Para ilustrar, um exemplo absurdo: digamos que numa cidade todos seus territórios são educativos, mas o transporte público é péssimo e as pessoas não circulam na cidade. Quer dizer, sem políticas que privilegiem a pessoa e não o automóvel, que garantam o usufruto da cidade para todos, não dá para dizer que a cidade é educadora.

Com isso em mente, gostaríamos que você avaliasse a importância em se falar de Cidade Educadora, Bairro-escola e Territórios Educativos no país e na cidade que temos hoje. O que esses conceitos apontam para o nosso futuro?
Helena: A importância disso hoje é expressa em várias pautas que são consideradas prioritárias no Brasil e no mundo, como o reconhecimento do indivíduo e a formação de cidadãos autônomos e comprometidos com a democracia. Está bem claro que a escola sozinha é incapaz de fazer isso, por isso, acreditamos que há a necessidade de articular vários setores para garantir os objetivos da educação. Há também pautas mais atuais, como o enfrentamento dos grandes desafios ambientais – que nos indicam que é preciso um reposicionamento da política, mas sobretudo das atitudes das pessoas, da participação no processo de tomada de decisão e focando-se mais no desenvolvimento local, que pode garantir uma sustentabilidade maior do que em grandes visões desenvolvimentistas. Além disso, também há um forte diálogo com a questão do direito à cidade, que no contexto urbano vêm ganhando força e tem forte conexão com a perspectiva dos territórios educativos. Quando se fala em priorizar pessoas no lugar de automóveis e fábricas, estamos falando de Territórios Educativos e Cidades Educadoras.

Quais são as referências teóricas e paradigmas que alicerçam essas reflexões?
Helena: Certamente falamos de um novo paradigma, de superação de uma visão única, iluminista da história, que acredita que a razão e o progresso levariam necessariamente à melhoria das condições de vida das pessoas. No entanto, temos percebido, desde a Segunda Guerra Mundial, que não é por aí. Temos buscado outras ideias, novos paradigmas que deem mais poder e ênfase para a produção e agentes locais, territórios e para uma transformação da vida que vem da vida. Falamos de uma mudança que não acontece só após uma revolução, mas que começa em cada um, cada política, cada grupo que é capaz de transformar parte da vida e, com isso, seu mundo. Acho que neste sentido, Boaventura de Souza Santos e Milton Santos são nomes muito importantes.

E no campo da educação?
Helena: Muitos dos grandes nomes da educação brasileira já falaram sobre educação e sociedade: Anísio Teixeira, Mário de Andrade e Paulo Freire são autores que sempre falaram que a educação sozinha dentro da escola não é a educação que muda o mundo e que a gente tem que entender as pessoas, seus contextos e a educação como um conjunto de processos que envolve a pessoa durante todo seu desenvolvimento. Essa visão integrada está presente na obra de todos esses autores.

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