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sábado, 25 de abril de 2015

Alan Fiske: “Precisamos entender a violência para eliminá-la”

O antropólogo americano diz que, na maioria das vezes, cometemos atos agressivos graças à ética que prevalece numa sociedade – e não por impulso ou cálculo racional

CRISTINA GRILLO
30/03/2015 
PACIFISTA AIan Fiske, em sua casa em  Los Angeles,  nos Estados Unidos. O antropólogo vê a violência como um ato social (Foto: Carlos Delgado/AP/ÉPOCA)
PACIFISTA
AIan Fiske, em sua casa em Los Angeles, nos Estados Unidos. 
O antropólogo vê a violência como um ato social
(Foto: Carlos Delgado/AP/ÉPOCA)
Dos tempos em que viveu em uma pequena vila em Burkina Faso, na África, o antropólogo e professor da Universidade da Califórnia Alan Fiske guarda a lembrança do dia em que o líder da comunidade visitou sua casa, gostou de algumas cadeiras e, sem cerimônia, resolveu levá-las consigo. O que aos nossos olhos seria um ato de violência – o roubo das cadeiras – naquela comunidade era aceito com naturalidade. Afinal, como líder da vila, ele tinha o direito de subtrair de quem quer que fosse os bens que lhe agradassem. A partir de experiências como essa e de vários anos de estudo e leitura, Fiske elaborou o conceito da violência virtuosa. Grande parte daqueles que cometem atos de violência, afirma, é motivada por seus julgamentos morais. Por exemplo, o ataque ao semanário francês Charlie Hebdo foi praticado por assassinos fanáticos que acreditavam, na verdade, defender suas crenças. É essa racionalização interna da violência que permite toda sorte de atos atrozes. A tese é defendida no livro Virtuous violence: hurting and killing to create, sustain, end and honor social relationships (em tradução livre, Violência virtuosa: ferindo e matando para criar, manter, terminar e honrar relações sociais). Para Fiske, o pai violento que bate no filho acredita que está fazendo o melhor para educá-lo; e o troglodita assassino que espanca e mata sua mulher quer, em muitas situações, resgatar sua honra e a de sua família.

ÉPOCA – O senhor trabalhou como voluntário do Peace Corps (organização de trabalho voluntário criada em 1961 pelo presidente John Kennedy) em algumas partes do mundo. Como o contato com culturas diferentes o ajudou a desenvolver a tese da violência virtuosa?
Alan Fiske – A experiência com os Peace Corps me ajudou a começar a entender a violência, mas minha pesquisa etnográfica em uma pequena vila em Burkina Faso foi muito mais importante. Dois anos lá me ajudaram a ver quando e como as pessoas usam a violência, de formas delimitadas e culturalmente aceitas como “certas” para fazer com que as relações sociais funcionem. Ler centenas de etnografias de várias culturas ao redor do mundo me deu a perspectiva necessária para construir e contextualizar essas visões. Sou um pacifista. Abomino todo tipo de violência e acredito que, para reduzir e prevenir, primeiro precisamos entendê-la. É por isso que estudo a violência: para eliminá-la. Só podemos entender a violência quando transcendemos nossos julgamentos morais para descrever o que de fato motiva aqueles que a cometem. Só quando compreendermos suas motivações sociais e culturais começaremos efetivamente a transformar esses motivos de forma que as pessoas não sintam mais a necessidade de agir de forma violenta.

ÉPOCA – É senso comum que a maioria dos atos de violência acontece por impulso (como nas brigas de trânsito) ou para que quem a comete tenha algum ganho econômico (por exemplo, quando assalta alguém). Mas o senhor defende a tese de que atos de violência são cometidos por questões morais, o que chama de “violência virtuosa”. Como chegou a essa conclusão?
Fiske – Revimos centenas de artigos e livros descrevendo os motivos que levam a atos de violência em várias culturas diferentes e em diversos períodos históricos. Descobrimos que em toda cultura, em todo momento histórico, grande parte dos atos de violência cometidos tem motivação moral. Quando alguém fere ou mata outra pessoa, ou fere a si mesmo, ou se suicida, está geralmente tentando de alguma forma controlar uma relação social, seja com a vítima ou com outra pessoa. Mas o objetivo é sempre fazer com que aquela relação transcorra da forma que ele considera correta, dentro dos padrões morais de sua família, de seus amigos ou de sua comunidade.

ÉPOCA – Em países pobres ou em desenvolvimento, como o Brasil, a violência criminal é uma grande preocupação. Mesmo onde há alta incidência de roubos, tráfico de drogas, a violência virtuosa é preponderante? 
Fiske – Quando digo que determinado tipo de violência é “virtuosa”, não estou fazendo uma avaliação moral nem descrevendo as justificativas que os perpetradores dessa violência usam para convencer os outros, mas sim os motivos reais para que cometam esses atos. Alguns atos de violência são puramente instrumentais, para que se tenha algum benefício material.  Mas a maioria deles surge a partir dos relacionamentos sociais. Mesmo quando ocorre entre pessoas que não se conhecem, geralmente o autor está tentando regular seu relacionamento com quem lhe é próximo.

ÉPOCA – Se a maior parte dos atos de violência está ligada a questões morais, como combatê-la?
Fiske – A violência é um problema sério, terrível. Mas há evidências muito fortes de que as sociedades primitivas, dos primeiros seres humanos, eram muito mais violentas. E há proporcionalmente menos violência nos Estados modernos do que há alguns séculos. Nos Estados Unidos e na Europa, vários índices estão em declínio significativo. Não tomamos conhecimento disso pela mídia, que dramatiza a violência, mas é a verdade. Para reduzir ainda mais os índices de violência, precisamos mudar nossa cultura. Quando todos nós tivermos a noção de que qualquer tipo de violência é sempre errado, talvez não tenhamos mais tantos casos.

"Há evidências fortes de que as sociedades primitivas eram muito mais violentas"

ÉPOCA – O conceito de violência virtuosa não pode ser usado como desculpa para que pais e cônjuges continuem a abusar de seus filhos e companheiros?
Fiske – Temos de ajudar essas famílias a encontrar formas pacíficas de lidar com seus relacionamentos – ou, se não conseguirmos, ajudar as vítimas a abandonar relações familiares  violentas. Quando as pessoas encontram caminhos para lidar com seus pares de forma não violenta, normalmente o fazem. É preciso criar formas para que não haja tolerância, por parte de amigos ou familiares, a respeito de violência doméstica. E temos de fazer nossa parte, insistindo para que todos os que conhecemos cuidem de seus relacionamentos com palavras e outros meios não violentos.

ÉPOCA – Nas últimas décadas, as sociedades ocidentais receberam migrantes com códigos morais e pontos de vista diferentes, mas com a intenção de manter suas tradições. Como lidar com essa situação?
Fiske – Quando alguém migra para outro país, deve obedecer as suas leis. Elas se aplicam a todos os cidadãos, não importa de onde tenham vindo.

ÉPOCA – Em seu livro, o senhor afirma que a polícia valoriza a violência contra criminosos como forma de aumentar o respeito da população. A mesma lógica se aplica aos traficantes, que têm suas próprias leis, como punir com tiros nas mãos aqueles que cometem furtos dentro da própria comunidade?
Fiske – Apesar de eu não ter estudado essas localidades, parece que sim. Em grande parte das comunidades há pessoas que acreditam ter autoridade legítima sobre os outros, fazendo cumprir as “leis” locais para proteger “suas” pessoas.

ÉPOCA – Um pai que bate em seu filho com o argumento de que está ensinando valores morais está praticando a violência virtuosa ou está usando seu poder para causar dor e medo a uma pessoa que não tem meios para reagir?
Fiske – Em muitas culturas, ao longo da história, praticamente todos os pais acreditaram que para transformar crianças em adultos moralmente responsáveis teriam de bater nelas. Agora sabemos que crianças que nunca apanharam, com pais que as tratam com carinho e amor, se tornam adultos respeitáveis, que têm compaixão e compreensão pelos outros. Entretanto, continuam a existir pais psicopatas, alcoólatras, que agridem brutalmente seus filhos. Precisamos impedir que essas pessoas continuem a agir assim, e, se não conseguirmos, essas crianças têm de ser retiradas desse ambiente e entregues aos cuidados de pais adotivos carinhosos.

ÉPOCA – Mas, se concordarmos que há aspectos morais que poderiam, de alguma forma, justificar o uso da violência, como poderemos proteger essas vítimas?
Fiske – A violência contra crianças é ilegal em quase todos os países. Então, se os pais não podem ser persuadidos por suas famílias, grupos religiosos ou líderes políticos, a polícia e os agentes sociais devem intervir.

ÉPOCA – Não é uma contradição que a maior parte dos atos de violência seja motivada por valores morais, em tempos que as pessoas se preocupam em alcançar liberdade e felicidade?
Fiske – Não podemos ser livres ou felizes até que estejamos a salvo e seguros – a salvo da violência alheia e seguros de nossa capacidade de lidar de forma não violenta com nossos relacionamentos. 

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