Sabe aquela fase em que as crianças ganham autonomia e parecem repentinamente maduras demais? Não se engane e fique por perto
ISABEL CLEMENTE
19/04/2015
Estamos para sair de casa e distribuo ordens para as crianças: mudem de roupa, escovem os dentes e penteiem os cabelos, por favor, enquanto a gente termina aqui de arrumar a cozinha.
E cada menina cumpre no próprio tempo - que nunca é o nosso - tarefas que pouco a pouco conferem independência a essas crianças que, vocês sabem, nascem num dia e crescem no outro.
Paro para observar esse momento e lembro do tempo em que tudo era mais confuso. Antes de sair, tínhamos que trocar fraldas, escolher as roupas, preparar bolsas. Parecia uma saga. Tínhamos que pensar em muda de roupas extras, brinquedos, pomadas, copos especiais. Planejar refeições e lanches, horários. Estar com tudo pronto era como andar em círculos. Enquanto aprontava uma, a outra se desarrumava. Aparecia na sala vestindo fantasia depois que eu já dava por certo que ela estava até penteada. E nisso de destrocar a roupa errada, a outra já tinha sujado a fralda de novo.
Eu e meu marido não estaríamos juntos na cozinha lavando e guardando louça porque um dos dois estaria encarregado de uma das duas. Na verdade, a louça sobraria na pia, o dia todo, para que um e outro pudesse atender uma e outra filha. E, uma vez instalados no carro, alguém lembraria que esqueceu alguma coisa importante.
O termômetro! Vai que a febre volta...
O meu caderninho! Eu esqueci o meu caderninho!
Ouço as duas meninas tão articuladas conversando e lembro do tempo em que palavras eram representações sonoras desprovidas de significados. Fascinante quando a criança começa a se explicar, e você percebe que os temas das conversas ficam muito mais elaborados. Amizades, enredos que misturam dor e amor, rejeição e aceitação. Viver, de uma hora para outra, se torna um verbo com outros predicados.
Não basta mais ensinar o que é certo e o que é errado porque as nuances se multiplicam entre os extremos como as dúvidas que elas trazem.
Mas eu estava absorta pensando nas tarefas das quais já sou poupada como alcançar algo no alto. E lá está a menina em cima da cadeira tentando abrir o armário da cozinha.
Sim, elas cumprem várias tarefas, se fazem de surdas para outras e se sentem importantes prestando pequenos favores. Acho um luxo quando uma delas me traz um copo d'água ou pergunta se pode ajudar. É como se a estrada de mão única admitisse aos poucos uma segunda via, na qual a criança transita e traz de volta um pouco da dedicação que oferecemos a ela.
Houve um tempo em que viajar significava carregar tudo sozinhos, malas, penduricalhos, ursos e duas crianças se elas estivessem desmaiadas de sono. Hoje, elas disputam para arrastar a mala pequena e vigiam a bagagem junto com a gente. Estamos avançando.
Houve tempos deliciosamente caóticos mas lá estávamos nós, num domingo qualquer, curtindo o fato de que elas crescem.
Demorei para me livrar da compulsão de querer vesti-las da minha maneira e sigo bem nessa abstinência forçada com raras recaídas e discretíssimas sugestões.
"Pegue uma roupa arrumadinha. Nada de camisas manchadas de tinta ou shorts velhos. No cinema faz frio, escolha uma legging".
De tantinho em tantinho, a menor das meninas também vai exercitando sua autonomia sob nossa vigília porque, se bobear, derrama pasta demais na escova de dentes enquanto pratica o saudável hábito de tomar conta de si, como a irmã maior, sua grande inspiração.
Quando finalmente saímos os quatro prontos pela porta da sala, é Letícia quem percebe a cena.
"Não é muito engraçadinho Carolina olhando para cima para falar com vocês?", diz, com aquele ar de irmã mais velha, imitando a pequena com o pescoço todo esticado.
"Não é nada", protesta a pequena, contrariada com a estatura que a separa do resto da família.
As duas crianças passam na nossa frente. Crescem toda noite quando não estamos olhando. Já não são tão pequenas nem grandes o bastante. Ganham independência, demonstram maturidade, e isso também é adorável.
Mas nem tanto, vai. Ainda preservam – uma mais do que a outra, naturalmente – aquilo que a caçula definiu muito bem quando eu a perguntei como conseguia imitar uma minhoca tão bem.
“É o jeito criança de fazer as coisas.”
Um jeito que me diz o quanto ainda precisamos estar por perto e atentos a tudo aquilo que cabe entre o certo e o errado.
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