Contribua com o SOS Ação Mulher e Família na prevenção e no enfrentamento da violência doméstica e intrafamiliar

Banco Santander (033)

Agência 0632 / Conta Corrente 13000863-4

CNPJ 54.153.846/0001-90

segunda-feira, 20 de abril de 2015

ENTREVISTA COM BORIS CYRULNIK*

Hoje em nossa sociedade, existem milhões de patinhos feios, ou seja, de crianças abandonadas e crianças sem um ninho de afeto. Porque o abandono não é apenas o abandono nas ruas, mas é também o abandono em casa.

As crianças sem família, sem escola, abandonadas em casa, sem afeto, sem proteção, deixadas de lado pela sociedade não participam da aventura social.

-   Como os maltratos físico e psíquico afetam o desenvolvimento da criança?

Se fala muito do maltrato sexual que é escasso. Se fala muito do mau-trato físico que é menos escasso. Mas o maltrato mais freqüente, o que mais prejudica o desenvolvimento da criança, é a carência afetiva. Uma criança criada em um isolamento sensorial, em um isolamento afetivo retém todo seu desenvolvimento. E seus dois lóbulos pré frontais atrofiam. No rinencéfalo, a parte interior de cada hemisfério, as células nervosas explodem.

É dizer que há uma morte dos neurônios porque a criança não tem afeto.

Difícil observar um não comportamento...

A agressão que mais se desenvolve em nosso planeta leva ao dano neurológico.

Descartes foi quem nos ensinou a separar corpo e alma.

Hoje, com as técnicas de neurobiologia e sobretudo, com as técnicas de neuroimagem, os pesquisadores estão se dando conta de que uma criança privada de afeto aumenta todas as suas atividades “auto centradas”, ou seja, o mundo exterior não a interessa e todo evento se converte em estressante. Tudo é um alerta, uma agressão.

Se lhe sorriem ele tem medo, se lhe estendem a mão, para ele é uma agressão. Uma banalidade para uma criança que tem suporte (apego seguro) é uma banalidade, mas para uma criança que não tem entorno afetivo, é uma agressão. Tem medo de tudo.

Quando se tem medo de tudo suas glândulas suprarenais segregam muita cortisona. A cortisona entra nas células nervosas e as faz romper.

Neurologista e psicólogo, estas titulações separam corpo e o espírito. Existe capacidade de superar tudo isto...

- O que é a resiliência?

É possível superar provas e desafios, mas existem condições para isto.  A definição mais simples de resiliência é retomar o desenvolvimento depois de uma agressão traumática. Esta agressão pode ser neurológica, afetiva, social e cultural.

A miséria social é uma imensa agressão contra o cérebro e o desenvolvimento da personalidade.

- Quais são as condições que permitem retomar o desenvolvimento?

Quando se reúnem estas condições a probabilidade de retomar o desenvolvimento é bastante grande. Sem estas condições a probabilidade de retomada é débil. Vemos crianças que estando em más condições retomam um bom desenvolvimento. A maioria, como nós, retoma algumas vezes um bom desenvolvimento e, outras vezes, a um desenvolvimento pior. E alguns não retornam ao desenvolvimento. Neste caso não falamos em resiliência.

A definição mais simples da resiliência é estudar as condições para a retomada do desenvolvimento depois de um traumatismo psíquico.

Não há um perfil de uma criança resiliente. Tem que se avaliar tudo o que funciona em seu redor.

Há uma constelação: a mãe é uma estrela importante, o pai é uma estrela menos importante que a mãe, mas tem uma função muito importante. A irmã, o irmão, a tia, o sacerdote, o monitor de esporte.

Que constelação rodeia a criança? Se uma estrela se apaga, se a mãe cai enferma, deprime ou morre, quais são as outras estrelas que funcionam e permitem à criança retomar seu desenvolvimento?

Temos que analisar todas as condições da criança, do seu entorno e ela mesma, para ver as possibilidades que tem para se desenvolver.

-  Porque algumas crianças são mais resilientes que outras?

Não podemos dizer que uma criança é mais resiliente que outra. Mas podemos dizer que quando no ambiente de uma criança as condições de resiliência são maiores e numerosas, esta criança tem mais probabilidade de desenvolver um processo de resiliência.

Podemos falar de três aspectos. Tem que se estudar quais são as condições internas da criança. Se ela adquiriu um apego seguro terá mais facilidade para falar, se expressar e poderá buscar um substituto afetivo em caso de infelicidade. É um ponto forte que está dentro da pessoa.

Precisa buscar no ambiente se tem algo de família, se a cultura estigmatiza a criança dizendo “você é um órfão ou bastardo e não vale nada” ou “depois do que aconteceu você não poderá seguir adiante”.

Nestes casos não há grandes possibilidades de resiliência.

Portanto, se a família, o bairro, a cultura rodeiam bem a criança, apoiando e dando suporte, a probabilidade de resiliência será ainda maior.

O terceiro aspecto é o significado atribuído ao traumatismo. Tomemos como exemplo, uma agressão sexual. Se a agressão sexual acontece fora da família e a criança recebe apoio, ela sofrerá mas a possibilidade de resiliência será grande. No entanto, se a criança é agredida por alguém da família não apenas haverá agressão sexual mas, também, haverá uma traição. Muito freqüentemente, a família não quer acreditar na criança. A possibilidade de resiliência, neste caso, é pequena. Porque se não existe apoio à criança ferida em seu ambiente, esta terá dificuldades de retornar ao seu desenvolvimento.

Portanto, analisamos todos os fatores presentes em uma situação e depois tentamos dar uma probabilidade da resposta resiliente.

- Que mecanismos colocam em marcha a criança resiliente para superar o traumatismo?

Nós usamos um anglicismo para falar “apego seguro”. Esta expressão quer dizer que a criança tem confiança em si mesmo, inclusive quando muito pequeno, com um ou dois anos. Se ocorre uma desgraça, por exemplo, a perda da mãe, a criança fica infeliz mas buscará um subtítulo afetivo. Buscará uma tia, o pai, vai se comunicar, se expressar, ou seja, vai se colocar. Sobretudo, se é uma criança que adquiriu um apego seguro, vai tentar imaginar, refugiar-se na imagem mental, no sonho. Sabemos, por exemplo, que entre as crianças resilientes há um grande numero de escritores, cineasta, pintores... Por que é um refugio imaginário de onde eles podem suportar o horror do real. “O real me tortura, mas existe um lugar de beleza, e nada o poderá arrebatar”. E ali a criança se defende e prepara sua aprendizagem, por exemplo, como futuro escritor e pode iniciar muito cedo, como na idade de 8 anos. Este é um ponto forte que esta no interior da criança. Mas, na maioria das vezes, é o apoio daqueles que o rodeiam, que lhe permite acessar o processo resiliente e retomar o desenvolvimento.

Mas existem famílias onde este processo não é possível. Existem culturas que impedem a resiliência. “Uma criança que não tem família é uma criança sem valor”; se uma cultura pensa desta maneira, o processo de resiliência é mais difícil.

- Você falou de altruísmo nas vítimas de maltratos infantis. Porque o altruísmo é um mecanismo de resiliência?

Eu propus analisar as condições de resiliência entre fatores internos da criança, os fatores externos e o significado que a criança ou a pessoa atribui à lesão. Dentro dos mecanismos de defesa psicológicos que há no interior de cada um de nós, existem 3 tipos. Os mecanismos de defesa negativos: “Eu não falo, eu sofro tudo em silêncio, eu me fecho”.

Dentro dos mecanismos, momentaneamente, aceitáveis está a negação: “Isto não é tão grave”. E é grave! Mas eu não falo, e está terminado. Mas não está terminado. As pessoas podem se defender assim. Entre os mecanismos de defesa mais positivos estão o altruísmo, a imaginação, a ânsia de conhecimento, o humor e a criatividade.

Nos demos conta de que o bebê ferido se interessa, freqüentemente, pelos demais. É dizer que, uma criança que tenha passado fome compartilha seu alimento com um vizinho.

Constatamos, por exemplo, que depois de uma catástrofe é natural que as crianças amadureçam extremamente rápido. Em dois ou três dias se vê crianças que eram bebês grandes, bem alimentados se ocuparem da casa, ajudam os pais muito rapidamente.

O altruísmo permite conservar os vínculos afetivos. Se sou altruísta tentarei ajudar; porque eu fui ferido, sei o que o outro sente, me sinto perto do outro. Tentarei ajudar, estabelecer um vínculo, tentarei compreender, conversaremos e encontraremos soluções. O altruísmo é um valioso fator de resiliência. Mas é um fator que, às vezes, custa muito caro. Muitos psicólogos foram crianças feridas que se superaram convertendo-se em psicólogos.

Quando são psicólogos, muitas vezes, alguns deles dão demasiadamente e se despersonalizam. Às vezes, chegam a ter angústia e depressão por esgotamento. Na França, hoje, isto se chama “burn out”. Quando eu era estudante se chamava “depressão por esgotamento”, mas é o mesmo. Muitos psicólogos, muitas pessoas são demasiadamente altruístas, até o ponto de despersonalizar-se.

Então, se não se é altruísta, se está só, não se pode ser resiliente. Mas se é demasiadamente altruísta, pode-se despersonalizar-se e provocar uma depressão por esgotamento. A solução é interessar-se pelos outros graças à empatia. Me interesso pelo que você passou e me coloco em seu lugar, quero conversar com você, te compreender e juntos vamos criar, escrever uma obra de teatro, por exemplo, que nos unirá e fará com que nos socializemos. Este é um valioso fator de resiliência.

- O sofrimento pode ser positivo?

Não temos escolhas. Você pode apontar alguém que jamais tenha sofrido? Não pode. Mas eu sim posso. Na França, existem lobotomizados, ou seja, pessoas que perderam zonas do cérebro, por acidentes. Quando se faz um scanner, se vê, muito freqüentemente, que a amígdala rinoencefálica, ou seja, a região da base do cérebro onde estão as emoções, quando se lesiona a cabeça e se faz uma ressonância, aparece um buraco neste lugar.

As pessoas com esta lesão são completamente indiferentes. Se riem do sofrimento dos demais. Que dizem estas pessoas?

Dizem, “na época em que sofria, ao menos estava vivo não temos escolha”. Todos nós temos nossa parte de sofrimento, mas nossas reações ante ao sofrimento não são as mesmas. Têm pessoas amplificam o sofrimento: “sofro por sua culpa”, este aumenta o sofrimento.

“Se não quero nada, é por sua culpa”, este aumenta o sofrimento. Tem pessoas que se fecham em si mesmas e isto também aumenta o sofrimento. E a terceira categoria são pessoas que fazem algo com o sofrimento. Por exemplo: “tentarei ajuda-lo porque vejo que você sofre e sei o que é isto. Eu também sofri e tentarei ajuda-lo”. Isto é altruísmo, empatia. Converti meu sofrimento em vínculo. Vou tentar entender meu sofrimento. Vou me converter em psicólogo ou psiquiatra ou escritor, ou artista.

Não vou contar o que se passou comigo porque isto me incomoda. Por pudor, tenho dificuldades de contar o que me aconteceu e, se eu te conto, isto incomodará você também. E assim não construiremos vínculo afetivo algum, porque se te conto você vai embora. Mas se escrevo uma novela, se escrevo uma obra de teatro, você vai ler a novela e verá a obra e, no desenrolar, podemos falar, nos comunicar e trocar. E a obra de arte desempenha um papel maior. O que eu não posso dizer porque não tenho forças para dizer, posso colocar como conteúdo em cena, numa obra de teatro, ou em filme ou em uma novela. Iremos vê-la juntos, haverá um vínculo, não me sentirei sozinho no mundo e terei feito algo com meu sofrimento.

-  Então, o sofrimento poderia ser um caminho para alcançar a felicidade?

O sofrimento não é, provavelmente, um caminho para se chegar à felicidade porque quando se sofre, se sofre. Mas não precisamos ser submissos ao sofrimento. Além do mais, a felicidade é uma opção difícil porque é muito heterogênea. Pode-se ser feliz sem motivo. Se lhe dão morfina, se lhe dão certas substâncias químicas será muito feliz, ainda que nada tenha mudado em sua história, em sua família ou mesmo em seu ambiente. Terá um êxtase eufórico, ainda que nada tenha mudado. Ao contrario, podem te dar substâncias que te provoquem infelicidade sem motivos. Nada haverá mudado nem em você, nem no seu entorno, mas será infeliz. As substâncias podem provocar sentimentos, sensações de felicidade ou infelicidade. A felicidade, eu penso que é uma opção pelo qual o ser humano sempre trabalhou, desde o tempo dos antigos gregos. Na Revolução Francesa afirmou-se pela primeira vez que é responsabilidade da sociedade organizar a felicidade dos indivíduos que vivem nela. E isto tem dado lugar a utopias das mais mortíferas na história humana, porque estas utopias, as utopias da felicidade, tem feito centenas de milhões de pessoas infelizes. A felicidade, não sei muito bem o que é. Mas acredito que se não a buscarmos estaremos desesperados e isto seria a infelicidade. Creio que não nos podemos submeter às dificuldades da vida. E podemos transformar o sofrimento em obra de arte e isto é menos infeliz. Não é o sofrimento que nos torna mais ou menos felizes, mas a vitória sobre o sofrimento. É a metamorfose do sofrimento em obra de arte. É a obra que nos torna felizes, não o sofrimento ou o não sofrimento.

- Você fala agora sobre os artistas e no livro “Patinhos Feios”, menciona o caso da cantora francesa Bárbara e de sua resiliência e de sua vitória.

Poderia explicar-nos este caso, tão recordado pelos leitores deste livro?

Bárbara teve uma infância terrível. Foi agredida sexualmente por seu pai. Quando decidiu defender-se foi a delegacia fazer uma denúncia, e o policial lhe disse: você tem 15 anos, não é maior de idade para fazer esta denúncia. Volte amanhã com seu pai. A lei era absurda! Depois, como era judia, foi perseguida pela gestapo. Teve que fugir por toda a Europa. Foi terrivelmente afetada por tudo porque estava sozinha.

Porque estava sozinha, ou seja, tinha um apego seguro mas não tinha nenhum apoio no seu entorno, estava muito só, estava deprimida. Até o dia em que descobriu a obra de arte, a canção. E se pôs a contar seu sofrimento. Mas em lugar de contá-lo no real, isto teria sido obsceno e não poderia tê-lo suportado, ela, então, contou de maneira suportável. Fez uma poesia e a converteu em canção. E suas canções são belas e emotivas. Ela pôde se expressar e se converteu em artista. Retomou seu lugar na condição humana e fez muitos amigos graças às suas canções. Se ela não houvesse encontrado essa forma de expressão artística para se defender, teria continuado só e, provavelmente, poderia ter se matado. Não sei, exatamente, o que teria feito mas teria sido fatal. Mas ao contrário, ela fez algo com seu sofrimento: contou o que havia vivido de uma maneira poética. Não teria suportado contar de maneira real e obscena.

- Como deve ser uma família para ajudar seus filhos a se desenvolverem?

A função da família é dar apoio à criança ferida, ao filho ferido. Mas nem todas as famílias o fazem. Existem famílias que não acreditam na criança, e ela, então, fica só com suas feridas. E não pode converter-se em resiliente, pelo menos dentro de sua família. Existem outras famílias que agridem a criança e diz: “cale-se. Seu pai jamais te faria isto. Eu conheço seu pai”.  A família cala a criança, e criança fica só. A resiliência converte-se em algo difícil. Existem famílias que atendem bem à criança. Mas de todas as maneiras, inclusive quando a família dá segurança à criança, é difícil falar, se comunicar e se expressar dentro desta família.

O peso das palavras não é o mesmo dentro da família e fora dela. A proximidade afetiva dá muito peso às palavras. Se a padeira me diz “não te quero” eu direi, “esta mulher é estranha, não sabe o que perde!”. Significa que me defenderei. Se minha mulher e meus filhos me dizem a mesma frase, eu vou sofrer.

São as mesmas palavras mas o peso da afetividade, absolutamente, não é o mesmo. É o que se passa sempre nas famílias. Dentro das famílias temos apoio afetivo, inclusive sem palavras. Sei que posso contar com minha mãe e com meu pai... Estão, assim me dão segurança. Mas, as vezes, a família deprime com a criança ferida. E neste caso, o ferido não tem uma base de segurança mas, ao contrário, tem uma base de insegurança.

Se minha família se deprime comigo, não me ajudará, se a família não crê em mim, me afundará. Temos necessidade de encontrar apoio afetivo dentro da família. Se não funciona dentro da família, se é difícil na família, podemos encontrar apoio afetivo com os amigos, com o grupo social, com um psicólogo. Nem sempre dentro da família é a forma mais fácil.

 - O que as famílias devem fazer para ajudar as crianças que adotam?

A maioria das famílias que adotam têm muito talento e sabem apoiar as crianças. E quando se trabalha com crianças abandonadas, dá-se conta que as famílias que adotam salvam muitas crianças. Mas existem famílias que acolhem e não sabem como fazê-lo. Existem famílias que adotam e, às vezes, são más com as crianças, as ferem e as fazem sofrer.

Penso que o importante é a personalidade da família que adota, e a dinâmica entre a criança e a família.

Conheço um exemplo: uma criança pequena se desenvolve bem em uma boa família. Esta família é aberta, tem muitos amigos. Um dia chega a tragédia. O pai e a mãe morrem em um acidente de carro e a criança é adotada por um casal amigo dos pais, que ele gostava muito. A criança tem um apego seguro, a família adotiva é muito boa, muito gentil e simpática e, no entanto, as coisas vão mal por causa do significado que a criança atribui a esta acolhida. A dizer, “eu não posso amar a meu pai e mãe adotivos, são gentis mas, no entanto, não posso amá-los porque se os amo traio a meu pai e minha mãe, serei um traidor. Reconheço que são amáveis mas me esforço em me portar mal porque senão trairei  meu pai e minha mãe”

Existem três fatores: o fato em si, o vivido e o que se passa dentro da criança, ou seja, o significado que ela atribui ao fato de haver perdido seu pai e sua mãe biológicos e de estar sendo acolhida nesta família. A criança reconhece que a família adotiva é gentil mas faz esforços para não amá-los e para não ser amado por eles, para não trair a seus pais biológicos. Neste caso, é a significação que impede a resiliência.

- Que papel tem o Estado na proteção da infância?

A política tem um papel muito importante na proteção das crianças e na proteção dos homens e das mulheres feridas. Os mitos, os preconceitos e lendas, também, têm um grande papel. Mas os mitos, lendas e  preconceitos podem evoluir e fazer a comunidade política também evoluir, graças ao trabalho de artistas, cineastas, psicólogos e novelistas. Podem fazer evoluir um mito. Os mitos mudam, e o Estado tem que se adaptar. Por exemplo, durante muito tempo o Estado pensava que uma criança nascida fora do casamento era bastardo e sem valor. E orientava este bastardo ao ofício da guerra. Os convertia em soldados e diziam: “Vejam estas crianças. Não podem viver normalmente, são maus.” Na verdade, a sociedade os haviam convertido em maus, porque haviam nascido fora do matrimonio. A Igreja pensava que só as crianças nascidas dentro do matrimonio tinham valor. A Igreja Católica combateu a adoção durante muito tempo e foi ela, também, que se ocupou destas crianças e trabalhou para recuperá-las. Houveram muitas instituições calorosas e generosas e outras que impediram a resiliência, maltratando as crianças. O Estado tem a função de criar instituições que permitem dar apoio às crianças feridas. Mas o Estado não o fará se não for dito que é possível recuperar estas crianças.

Esta é a função da teoria da resiliência, dizer que se analisarmos as condições para retomar um desenvolvimento, poderemos recuperar um grande número de crianças feridas. E se abandonarmos estas crianças, orientaremos muitos deles à desgraça, à delinqüência e ao sofrimento.

 - Uma criança que tenha sofrido violência de seus pais, por exemplo, não tem necessariamente que converter-se em um adulto violento ou negligente?

O preconceito é dizer que uma criança que tenha sido abandonada, abandonará também a seus filhos. Que uma criança que tenha sido maltratada, maltratará também seus filhos. Isto é um preconceito.

Quando fazemos estudos de uma população nos damos conta de que cerca de 10% das crianças que foram maltratadas se convertem em pais que maltratam. É uma cifra maior que da população geral, onde os maltratos físicos são inferiores a 1%. É 10% ou 20% maior que na população geral. Mas, em realidade, não estou falando dos 90% das crianças que foram maltratadas e que não repetiram jamais o padrão do maltrato. Eles não entraram na estatística, não os vemos nunca. Vão bem, se desenvolvem bem com suas mulheres, seus maridos, com seus amigos. Se desenvolvem bem e por isso não são vistos, não entram na estatística. Os que entram na estatística são os que foram maltratados e repetem os maltratos. Mas não são mais de 10% da população.

Ou seja, há uma esperança para as crianças que tenham sofrido. Há muita esperança e muito trabalho a fazer.

- Em que idade podemos dizer que uma criança não pode se recuperar? Ou não há idade?

A resiliência é muito mais difícil depois da idade de 120, 130 anos. Aí se torna muito mais difícil. Mas quando se tem esta idade?

Eu dirijo um grupo que se chama “Resiliência e Envelhecimento”. Inclusive, na enfermidade de Alzheimer pode-se ver melhora. Vemos que se organizamos o entorno afetivo do idoso, ele melhora. Não se curam, não os curamos, mas melhoram, sofrem menos, suas famílias sofrem menos com eles. Dentro de uma família, quando há um doente de Alzheimer, existe 4 vezes mais depressão do que na população geral. É muito difícil com uma mãe, ou pai com Alzheimer. Quando se aplica o processo de resiliência com a família ou com o enfermo, os sintomas da enfermidade tornam-se menos importantes. As lesões são as mesmas mas os sintomas são muito menos importantes. Não se cura a enfermidade mas as pessoas são menos infelizes.

 - Porque alguns pais maltratam seus filhos? Qual é a motivação de um pai maltratar seus próprios filhos?

Eu diria que não há uma motivação de maltrato às crianças. Que há pulsões mal trabalhadas, mal controladas por parte dos pais. Aqui há paridade, os homens e as mulheres que maltratam são 50%. Penso que é raro que tenham a intenção de fazer uma criança sofrer. Isto existe mas é raro. Na maioria das vezes, trata-se de uma ausência de representação do mundo da criança. Os pais que maltratam estão submetidos às suas pulsões, não as controlam. “As crianças me colocam nervoso e eu não sei controlar minhas pulsões. É o que tem acontecido é o que me tem colocado nervoso. Eu o maltrato porque ele começou. Eu me defendo.”

A maioria dos pais que maltratam dizem que não fazem mais do que se defender dos maltratos da criança. Dizem que a criança que começou. Isto pode ser uma motivação. Pode haver motivações, mas não são motivações para o maltrato em si. Por exemplo, alguns pais querem endurecer seus filhos para treiná-los para a vida. Como não conseguem se colocar no lugar da criança, acabam maltratando-a. Também existem pessoas que maltratam as crianças por razões ideológicas. Consideram que as crianças são filhos do inimigo que se convertem em crianças de seu próprio clã, de sua própria nação, de seu próprio chefe e maltratam, não à criança mas ao seu próprio inimigo.

Os perversos, por exemplo, são muito sedutores. Parecem muito equilibrados, às vezes, elegem os próprios filhos. Os perversos sabem falar, sabem manipular, sabem fazê-lo. Por isso, não desconfiamos deles, senão, não poderiam levar a cabo suas perversões. O perverso manipula todo mundo e faz sofrer as pessoas por prazer.

Ou seja, existem muitas causas para os maltratos. Gente submetida às suas pulsões, que fazem sofrer os que estão ao seu redor, por prazer, por ideologia e sem se dar conta, muitas vezes, de que os fazem sofrer.

 - Que relação existe entre amor e a violência dos pais?

A relação entre o amor e a violência ... por exemplo, muitos pais maltratam seus filhos porque seus filhos fazem tonteiras, besteiras e os pais se angustiam pelas besteiras que os filhos fazem. Em lugar de lhes dar segurança, em lugar de explicar-lhes, reagem a partir de sua própria pulsão  e golpeiam a criança porque estas os colocaram ansiosos.

Nestes casos, os pais não controlam suas pulsões. Os pais são infelizes, não controlam suas pulsões e agridem a criança, tornando-a, também, infeliz. Mas eu não falaria em motivações. Creio que se trata, sobretudo, de uma ausência de controle das emoções ou de uma ausência da representação do sofrimento que aflige ao outro, ou seja, a criança, sua mulher ou seu marido.

Porque as mulheres também podem maltratar os homens. É menos freqüente que o seu contrário, porém, acontece. Mas é uma ausência da representação daquilo que se passa no mundo do outro.

 - Freqüentemente a criança quer a seus pais, apesar de seus pais lhe fazerem sofrer.

A criança maltratada sente apego com seus pais que maltratam. Têm um vínculo afetivo. E quando os assistentes sociais, os psicólogos, os educadores falam mal do pai ou da mãe, que tenha maltratado sua criança, esta sente vergonha e fica infeliz.

A criança se apega ao pai e à mãe e gostaria que eles se convertessem em um pai e uma mãe como todos os demais, ou seja, pais bons e atenciosos. Bárbara, a cantora da qual falamos, houve um momento que ela quis ajudar seu pai, quando soube que ele estava morrendo. O que disse em uma de suas canções? Ela chegou justo depois da morte de dele. Ela chegou muito tarde e canta: “ele se foi sem um adeus sem um te gosto.” Ela sonhou em ter um pai como os outros, fez falta que ele tivesse dito “perdoa-me, te amo”, e ela haveria sido a mais feliz das mulheres. Ela chegou tarde e ele não pode dize-lo. Então, as crianças se apegam, inclusive a pais que maltratam, porque eles esperam pais que acolhem.  E querem e necessitam serem amadas. Também, porque os pais que maltratam não maltratam o tempo todo. Por exemplo, conheci uma criança que sua mãe a maltratava de uma maneira incrível. A mãe  a trancava em um armário e passavam-se um, dois, três dias. Não dava de comer, batia, a amarrava. Era um maltrato imenso. Um dia a mãe a pegou pela mão e a levou para passear. Foi uma maravilha. Finalmente, era a mãe de seus sonhos. Ou seja, a criança se apega inclusive aos pais que maltratam.

 - Você crê que há um monstro dentro de cada um de nós?

Penso que qualquer um de nós pode fazer mal ao outro, sem se dar conta. Como um pai que maltrata, que não controla suas pulsões e se defende. Mas não é intencional. Reconhecidamente, o monstro que existe no fundo de cada um de nós é aquele que sofre em segredo. Se eu sofro em segredo e não tenho possibilidade de me acalmar, se não tenho possibilidade de falar, ou de escrever uma novela ou de fazer uma obra de arte, vou sofrer, vou me calar. Vou fechar o monstro que esta no fundo de mim mesmo e, um dia, estarei cansado, ficarei nervoso, não me controlarei e o monstro surgirá contra os demais. Mas não é intencional, é que eu não estou bem, não estou sabendo me defender. Tenho que trabalhar meu processo de resiliência. Se eu tivesse trabalhado teria me convertido em um pessoa altruísta, teria aprendido a falar, a mentalizar-me, a compreender, a cantar. Se pudesse, teria feito uma obra de arte, haveria feito algo com meu sofrimento e o monstro haveria escapado, não existiria mais. Mas ao contrário, se você me faz calar dizendo, por exemplo, “com o que você passou, esta perdido, não escapará disto jamais, te daremos uma pequena pensão. Cala-te, não estude, não aprenda um ofício, você é incapaz.” Se minha família e minha cultura me fazem calar  vou sofrer, me fecharei em mim mesmo e, um dia, o monstro explodirá.

 - Você acredita que a infância está bem protegida em nossa sociedade?

Nossas crianças estão melhor protegidas que antes, plano material. A morte de crianças é muito escassa. Até o séc. XIX, 1 em cada 2 crianças morriam antes do 1º ano de vida. Até o descobrimento de Sommelweirs, médico húngaro, que descobriu a profilaxia do parto em 1850, as mulheres morriam, em média, aos 36 anos. Morriam geralmente no parto, aos 36 anos. A esperança de vida das mulheres era muito curta. Tinham 13 gravidezes, traziam ao mundo 7 crianças e isto dava lugar a pouco menos de 4 adultos. As mulheres morriam muitos jovens e não conheciam muito mais que a vida que elas davam e a morte. Esta era a vida das mulheres. E quando a vida mudou, as mulheres se realizaram e a violência física diminui muito. Morre-se menos mulheres pelo mundo no ocidente. Em outras partes, todavia, há fome, a seca provocará tragédias, migrações climáticas, guerras climáticas, guerras ecológicas. Mas antes o sofrimento era cotidiano. A educação consistia em aprender a sofrer.

A criança não podia queixar-se, senão, não era um homem. As mulheres deviam aprender a parir com dor, senão não poderiam amar seus filhos. O sofrimento era cotidiano e se morria muito jovem, as mulheres e crianças sobretudo. Os homens morriam mais velhos. Os senadores romanos tinham entre 45 e 50 anos. Os grandes burgueses e os aristocratas tinham a mesma esperança de vida que hoje. Mas eram apenas 2% da população. Nossas crianças têm menos sofrimento material mas creio que têm mais sofrimento psicológico porque estão menos rodeados que antes. Antes havia sempre um grupo de mulheres, em grupo de homens e um grupo de crianças que os rodeavam. Brincavam e aprendiam o tempo todo. E agora estão capturados na escola ou na solidão de suas casas. Nossas crianças estão melhores do que antes fisicamente e intelectualmente, mas moralmente são mais frágeis.

-  As pessoas, com quem falamos enquanto fazemos esta entrevista, se surpreendem ao saber que existem crianças que sofrem aqui e não no 3º mundo, mas aqui ao lado. A que você acha que se deve esta reação, ao pensar que as crianças sofrem aqui?

Eu penso que os pais, freqüentemente, ignoram o sofrimento de seus filhos porque todos temos o que se chama “amnésia infantil”. Ou seja, que todos nos esquecemos o que se passou durante os 1º anos de nossa vida. Além do mais, a memória não é um regresso ao passado. A memória é uma representação do nosso passado. Ou seja, fazemos um relato do que imaginamos que foi o nosso próprio passado e o chamamos de “paraíso da infância”. Alguns escritores afirmam: Ao primeiro que diga que a melhor idade é a de 20 anos, eu o mato”. É dizer que esta é a idade das emoções intensas, do amor, do sofrimento, da decepção e dos sonhos rotos.

Nossas crianças têm uma vitalidade que nos faz crer, e temos a necessidade de crer, que nossas crianças são felizes, porque queremos que sejam felizes o tempo todo. Fazemos esforços para que sejam felizes mas, de fato, sofrem. São felizes às vezes. Materialmente se desenvolvem melhor que antes. Mas psicologicamente estão menos rodeados que antes. E a mãe, o pai, não podem rodea-los, acompanhá-los todo o tempo. Se ainda houvesse uma só pessoa que os rodeasse, poderiam desenvolver um vínculo afetivo. Antes havia um grupo de mulheres, um grupo de crianças e um grupo de homens, ou seja, muita vida ao redor da criança. Na índia, mesmo hoje, as crianças são muito bem rodeadas e acompanhadas. Alí, os adultos são de uma pobreza incrível, mas  as crianças correm por toda parte e todo mundo se sente pai destas crianças, todo mundo pode intervir acompanhando, dando atenção e suporte. Um adulto, uma mulher, um homem, podem intervir, é seu filho também. Podem ralhar se fizer uma burrada, podem curar se tenham feito algum dano, podem lhe dar segurança se a criança tem medo. Todo mundo é pai e mãe das crianças. As crianças estão constantemente rodeadas e dinamizadas pelos jogos e pelas normas. Não se pode permitir-lhes tudo. Em nossa sociedade, as crianças são, freqüentemente, cuidadas pela televisão e por um refrigerador e isto não é uma relação humana. Eles gostam da tv, gostam do refrigerador mas não é uma relação humana. Assim não aprendem o ritual de interação, podem falar como querem, tudo é permitido, não fazem falta os rituais. Nossa sociedade não ensina às crianças.

 - Não parece que o futuro vai ser diferente. Parece que seguiremos deixando as crianças com o refrigerador e a tv.

A cultura muda todo o tempo, a cada 10 anos a cultura muda. Você não sabe porque acaba de nascer. Portanto não pode sabê-lo mas a cultura muda a cada 10 anos e a cada 10 km. A cultura esta em desenvolvimento constante de idéias de convicções de oposições. Tem-se que escrever, tem que conversar...

A cultura muda todo o tempo. O que hoje é um valor para nós pode ser que não seja para nossos filhos. Nós mesmos nos rebelamos diante de nossos pais.

O papel dos adolescentes é fazer evoluir a cultura. Uma cultura que não evolui se converte em uma cultura morta, é uma cultura petrificada.

A maioria das culturas se tornaram rígidas, até o ponto de que o meio ambiente muda e a cultura inteira desaparece. E todas as culturas têm caído ou caíram uma atrás da outra, por sua rigidez. As culturas que permanecem são as culturas que mudam. E se uma cultura muda existem conflitos todo o tempo. Tem que se convencer da aventura cultural. Neste momento, muitas crianças de países ricos estão sendo cuidadas pela televisão e pelo refrigerador. Mas quem sabe encontra-se soluções mais humanas para as crianças que venham depois?

 - Você se considera um otimista?

Sou um otimista porque penso que vamos até a catástrofe. Toda as evoluções se fazem a partir de catástrofes. A catástrofe é um corte e depois se começa uma nova forma de vida. Se todos somos adultos podemos em consciência, debater e evoluir sem catástrofes. Quem sabe o faremos?

Mas, a maioria das vezes, tem que se chegar à catástrofe para criar outra maneira de vida, juntos. As evoluções se fazem a partir da catástrofe mas depois da catástrofe surge uma nova forma de vida.

Tradução livre de Adriana Venuto

*Neuro-psiquiatra, psicólogo, psicanalista e etologista francês.

Sociedade Antroposófica no Brasil

Nenhum comentário:

Postar um comentário