por Matheus Pichonelli — publicado 24/04/2015
'Dívida de Honra', western de Tommy Lee Jones com Hilary Swank, reabre feridas do debate sobre domesticidade, loucura e violência
"Aqui as pessoas falam sobre a morte e sobre os impostos. Mas sobre a loucura ninguém diz nada". A sentença do reverendo logo no início de Dívida de Honra, quarto filme de Tommy Lee Jones como diretor, é o prefácio sobre o destino de três mulheres que enlouquecem em um vilarejo do Nebraska por motivos aparentemente diferentes.
Hilary Swank em cena do filme "Dívida de Honra" |
Tidas como desajustadas e incapazes de conviver num bolsão de civilidade cercado por terra seca por todos os lados, elas se tornam um problema para os moradores da cidade que decidem, de maneira arbitrária, enviá-las ao outro lado do país em uma jaula construída sobre uma carroça.
A solução diante da loucura é a medida profilática da nação que levou ao extremo oeste mais do que estacas e madeira. Levou uma ideia de civilização e normatividade baseada na virtude comunitária e no direito ao uso e exploração da terra.
Os desajustados, como numa releitura de No Tempo das Diligências, de John Ford, seguem o caminho contrário.
No filme, as mulheres condenadas ao silêncio têm um ponto comum de partida e chegada. O que as une é uma travessia incompleta nos papéis designados a elas: a filha, a esposa, a mãe. Papéis incompletos não apenas pela ausência de razão, juízo ou vocação, mas pelo trasbordamento delas em uma comunidade onde o uso e a posse de seus corpos são também direitos fundados na violência.
Não por acaso, há no filme uma referência constante à semente plantada em corpos e no areal. Por ali, avisa o reverendo, não se fala sobre loucura; não se fala dos silêncios que a precede e que a elimina. Essa eliminação, tanto no Oeste como ao Sul e ao Norte, é lenta e gradual. Trata-se de uma aliança com um destino manifesto, mais ou menos como, em vez de condenar o desajustado à forca, amarrá-lo a uma corda no pescoço entre uma árvore e o lombo de um cavalo.
É nessa posição, entre uma corda no pescoço e o lombo de um animal, que Mary Bee Cuddy, personagem de Hilary Swank responsável por levar as três mulheres para longe, encontra Georges Briggs (Lee Jones). Como ela, Jones é o intruso que teve a ousadia de penetrar os espaços para os quais não fora chamado: é o fora da lei que invade terras onde os cidadãos de bem, produtivos e domesticados, não querem habitar. Para salvá-lo, Mary propõe uma troca: ela o livra da forca se ele a ajudar na travessia com as mulheres.
Trato feito, ela encontra na figura do homem fora da lei não apenas um ponto de apoio e parceira. Encontra um duplo, num jogo de espelhos presente durante todo o filme. Mary, como as loucas condenadas, é uma mulher de travessia interrompida. Não é filha, não é mãe, não é esposa. Trabalha sozinha na fazenda e, "durona e sem atrativos", como define um vizinho, está condenada à rejeição, à solidão e ao delírio – um delírio manifestado toda vez que toca um pedaço de pano pintado como se fosse um piano real.
A ausência dos papéis que dela se espera é também sua condenação. Ao longo da travessia, ela se vê constantemente inserida na jaula das mulheres rejeitadas pelos maridos e pela cidade. Não se sabe se a loucura a impregna pelo caminho ou se o caminho é também um delírio. Não se sabe se Mary é as três mulheres ou se as três mulheres se transformam em Mary.
No filme Meninos não choram, Hilary Swank venceu seu primeiro Oscar de melhor atriz ao interpretar uma jovem transexual. Sua atuação a transformou no rosto de um debate sobre gênero e intolerância. Em Dívida de Honra, a fronteira entre gêneros é a liga em um gênero marcadamente masculino: o western.
Para cumprir a travessia e levar as mulheres a salvo para o outro lado do país, a mulher "durona e sem atrativos" incorpora os valores associados ao masculino em uma sociedade ainda notadamente falocêntrica.
A exemplo do parceiro homem, que invade os espaços por usucapião, Mary consegue no grito circular pelos caminhos que não foram feitos para ela. “Esta estrada não é para mulheres”, costuma ouvir a personagem, que já não sabe se guia ou se é guiada. Mas os espaços dedicados a ela não são menos vulneráveis à violência, ao estupro, à solidão, ao esquecimento, à exclusão e à desapropriação da subjetividade.
Sem prejuízo a quem não viu o filme, é possível dizer que a solidariedade do personagem de Jones é uma alegoria. Para a travessia metaforizada no drama, não basta receber apoio; é preciso conquistar o espaço à força. Daí a inversão da ordem quando o encontro entre os personagens é inevitável: “entre dentro de mim”, diz Briggs, como se selasse, no ato sexual, um acordo antropofágico necessário para encerrar a travessia. Ao se tornar um “homem” e absorver a virilidade masculina para se afastar da loucura e da violência, é como se a mulher emprestasse o pescoço para a morte.
O acolhimento a essa loucura não falada, mostra o filme, não é oferecido por um líder religioso de olhar condenatório e disposto a corrigir à força um suposto desvio. É uma senhora, interpretada por Meryl Streep, que, para acolher, propõe um novo pacto. Este não ignora o passado. Apenas dá a ele uma narrativa e uma história.
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