Menores de 18 anos raramente são autores de atos de violência. Ao contrário, são as principais vítimas. Tratar adolescentes como adultos é sujeitá-los a um sistema de punição menos eficaz
MARIA DO ROSÁRIO
02/04/2015
A redução da maioridade penal mexe com dores profundas em um país com índices apavorantes de violações e mortes. A questão não deve ser tratada com ligeirezas. Devemos reconhecer que muitos que se engajam nessa causa podem ter sofrido as dores insuportáveis da violência ou ainda, sinceramente, pensam ter encontrado uma solução simples para um problema complexo. A estes, minha total consideração. Muito diferente é o caso dos que usam o sofrimento alheio para transformar a violência e sua divulgação numa escada para a promoção pessoal.
A criança e o adolescente só passaram a ser considerados sujeitos de direitos com o advento da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990. Desde 1993, várias propostas de emendas constitucionais procuram revisar essa condição e devolvê-los ao “menorismo” vigente até então. A essas demandas, o Parlamento parece agora inclinar-se a dar uma resposta populista. Admitiu o avanço da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 171, que quer reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos. É uma falsa solução.
Não há parâmetros sociológicos ou científicos que comprovem que mudar a legislação penal pode solucionar rupturas sociais e reduzir a cultura da violência. Impõe-se observar que a PEC 171 compromete direitos e garantias individuais. São aqueles que o constituinte quis proteger de maiorias eventuais e de arroubos autoritários, ao instituí-los como cláusulas pétreas, que não podem ser modificadas.
O Artigo 60 da Constituição desautoriza aos congressistas abolir princípios como o regime democrático e os direitos humanos. É o que faz a proposta de emenda constitucional que reduz a maioridade penal. Além do Artigo 60, ela contraria os Artigos 227 e 228, onde estão estabelecidos os direitos a serem garantidos às crianças e aos adolescentes até os 18 anos de idade. A PEC 171 também desrespeita a Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas de 1989, da qual o Brasil é signatário, que considera integrantes da infância os indivíduos até os 18 anos. Assim, a PEC 171 propõe uma violação do princípio constitucional que diz que o menor de 18 anos deve ser considerado uma pessoa em condição peculiar de desenvolvimento. A família, a sociedade e o Estado são responsáveis por assegurar as condições mais adequadas para que esse desenvolvimento ocorra. Os mesmos dispositivos constitucionais expressam a obrigação absoluta e prioritária de manter as crianças e os adolescentes a salvo de todas as formas de violência, negligência e crueldade.
MARIA DO ROSÁRIO
é deputada federal pelo PT do Rio Grande do Sul.
Foi ministra da Secretaria Especial de Direitos Humanos
entre 2011 e 2014, durante o governo de Dilma Rousseff
(Foto: Monique Renne/CB/D.A Press) |
A redução da maioridade penal poderá, na prática, ampliar a violência. O sistema de privação de liberdade em unidades específicas para adolescentes tem um índice de reincidência da ordem de 20%. Um número muito expressivo se observarmos que a Lei 12.594/2012, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), nem sequer está sendo cumprida em sua plenitude porque o país não conta com unidades adequadas ao atendimento integral juvenil. Em contrapartida, o sistema carcerário para maiores de idade, que viu sua população de internos crescer 511% entre 1990 e 2012, tem taxas de reincidência no crime de mais de 70%. Portanto, colocar esses adolescentes nas delegacias e penitenciárias brasileiras é oferecê-los ao comando dos agentes do crime para o cometimento de atos mais violentos. Significa colocar à mercê de violências e crueldades quem está mais desprotegido.
A defesa da redução da maioridade penal parte da premissa de que os adolescentes são os maiores responsáveis pela violência no Brasil. A realidade indica exatamente o contrário: são os adolescentes e jovens as principais vítimas da violência. A maioria dos que cometem os crimes mais violentos já ultrapassou essa faixa etária. Conforme o pesquisador Julio Jacobo afirma no Mapa da Violência 2012, as causas externas de mortalidade de crianças e adolescentes no Brasil cresceram de forma assustadora nas últimas décadas. Representavam 6,7% do total de óbitos em 1980. Passaram a 26,5%, em 2010. Os homicídios representam 22,5% do total de mortes por causas externas nessa faixa etária.
Criminalizar os adolescentes, portanto, mascara a realidade de uma nação que não tem sido capaz de salvar suas crianças e jovens da morte. A PEC 171 é uma tentativa de responsabilizar uma parcela deles por essa realidade. Não é verdade. Menos de 1% dos atentados contra a vida no Brasil são cometidos por adolescentes – apenas 0,013% dessa parcela da população. Isso significa que não são eles os principais responsáveis pelo absurdo número de mortes violentas. Significa que nossa prioridade deveria ser analisar mais profundamente as questões de segurança pública e cultura para transformar essa realidade.
Não me parece razoável que os parlamentares de hoje ainda acreditem que a legislação penal por si só resolva todos os problemas da criminalidade no Brasil, muito menos que essa seja uma abordagem correta da nossa juventude. É preciso implementar plenamente a Lei 12.594/2012, que constitui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, e traçar estratégias para a redução da violência, observando um conjunto de medidas necessárias no âmbito da segurança pública, educação e cultura. Devemos assegurar aos adolescentes brasileiros a possibilidade de se engajar em projetos de vida baseados nos valores da solidariedade e do respeito mútuo, em que eles possam contribuir com a sociedade e estejam livres da violência.
Se é moralmente inaceitável um pai abandonar seus filhos, é antiético uma nação desistir de sua infância e juventude.
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