Por Letícia Penteado
fevereiro 1, 2015
Um post meu do ano passado, chamado “Tirania Infantil?” tem recebido muitos acessos e muitos comentários indignados e ultrajados. Pessoas dizendo que eu estou arrumando desculpas para não educar, nem dar “limites” – porque, aparentemente, falar contra o adultismo e a violência, seja física, seja psíquica, que é praticada rotineiramente contra crianças e adolescentes, é defender a permissividade.
Esse maniqueísmo sempre me choca, mas nunca me surpreende. Afinal, de que outra forma se racionalizaria a adoção de medidas violentas que são não só desnecessárias e inúteis, mas prejudiciais às nossas crianças?
Muito mais fácil tratar o assunto como se só houvesse duas alternativas possíveis: ou a permissividade (que se prevê ominosamente que levará a criança a se tornar um monstro com o misterioso poder de tiranizar pessoas que detém poder quase absoluto sobre ela), ou o autoritarismo (que se supõe que a fará “se ajustar”).
Infelizmente, me parece que, para muita gente, educar ainda é sinônimo de violentar. Se não tem dor, humilhação e imposição, não há educação. Não há “limites”.
Claro, a maioria sequer reconhece que é isso o que está fazendo com a criança. Repete para si mesme e para o mundo que não há violência em só demonstrar carinho quando a criança faz o que lhe é mandado, reprimir demonstrações de carinho quando ela age de forma que se considera negativa, desdenhar da criança, debochar dela, manipulá-la. Até mesmo a violência verbal e física passam por “educação” por aí. Tem quem diga, por exemplo, que “bater para educar não é agredir”.
Pior, qualquer coisa que se assemelhe a ouvir a criança, pedir sua opinião sobre algo que lhe diga respeito, tentar compor vontades (ao invés de simplesmente impor a vontade adulta), é vista como “ser tiranizade” por ela. Afinal, na cabeça dessas pessoas, a esta cabe apenas abaixar a cabeça e obedecer. Ouvir, mas não falar.
São pessoas que estão tão imersas na lógica de OU dominar OU ser dominade, que não são capazes sequer de enxergar qualquer outra forma possível de se relacionar com outrem, menos ainda adotá-la.
E é chato né? Morrer com o mico na mão. Nunca chegar a sua vez. Nos trotes de escola, faculdade ou instituições militares, pessoas que já estão lá dentro (“veteranas”) praticam violências com quem acaba de chegar (“calouras”, “bichos”, “boys”, etc.), sob a premissa de que estas um dia serão, elas próprias, mais antigas ali e terão a chance de fazer o mesmo, ou seja, vingar-se em outras. Repassar as agressões, como se fazê-lo apagasse o que vivenciaram. O que aconteceria se essa cadeia fosse quebrada? Se as vítimas de um momento fossem impedidas de vitimizar em outro?
Eu entendo que nem sempre é fácil ter passado por uma opressão quando se era uma pessoa pequena e frágil – física e emocionalmente – e, depois de crescer, não ter a oportunidade de descontar isso em outra pessoa pequena e frágil. Nem se trata de algo que, na maioria das vezes, é feito de forma deliberada e consciente. Mas creio que seja difícil construir um mundo novo se não estamos dispostes a começar a demolir o velho, e isso inclui o que deveria ser o nosso ponto de partida: a opressão que nós mesmes estamos em posição de exercer.
E há mais em jogo que a mera sensação de “mas agora é minha vez”. Afinal, muitas dessas pessoas passaram por isso e “agradecem muito” a ses mães e pais pelo que lhes foi feito.
Elas aprenderam a entender a brutalidade como forma de amor, porque, do contrário, teriam que lidar com a falibilidade de ses cuidadores, o que já é assustador por si só, e ainda somada à sensação de injustiça e desamor que inevitavelmente emerge quando sofremos uma agressão por parte de alguém a quem amamos.
Além disso, como essas pessoas têm dificuldade de lidar com as coisas em termos que não sejam absolutos, a exemplo da questão permissividade X autoritarismo – lógico, já que foram criadas de forma binária, sendo sempre ou aprovadas ou reprovadas, ou recompensadas ou punidas, ou vencedoras ou perdedoras, ou dominantes ou dominadas – elas não conseguem olhar para o sofrimento pelo qual passaram enquanto cresciam sem sentir que estão invalidando toda a parte boa de suas infâncias, negando completamente seus pais e suas mães.
Por medo de se sentirem ingratas e culpadas, elas preferem simplesmente fingir que tudo se justificava, tudo foi bom, tudo foi lindo. Riem de suas feridas, chamam-se de bobas por sentirem dor, e sentem-se ridículas por ainda se magoarem, caso ses mães e pais (como tantes outres) continuem usando as mesmas táticas violentas com elas mesmo depois de elas crescerem.
Não raro falam que mereceram cada uma das violências a que foram submetidas; mesmo nos casos de mais extrema crueldade isso acontece, coisa que me lembra demais a mulher que passa por violência doméstica e diz que foi ela quem causou a agressão. Que foi ela que disse isto, que fez aquilo, que pensou aquilo outro. Como se as mãos que a seviciaram e a mente que optou por fazê-lo fossem dela própria. Como se houvesse alguma circunstância que justificasse agredir alguém a quem supostamente se ama, e, ainda por cima, menor e mais frágil.
Não à toa, são inúmeros os casos de pessoas que, como eu, depois de sobreviverem à violência doméstica e saírem de relacionamentos abusivos, descobriram que a raiz de sua sujeição a esse tipo de relação era justamente o condicionamento pelo qual passaram durante a sua infância, para que aceitassem a violência (física ou não) como parte de serem amadas. Muitas vezes, inclusive, como demonstração de amor, de cuidado. Que foram programadas por quem as educou, ainda que não intencionalmente, para tolerar o desrespeito e a agressão sem nem retrucar.
Porque, né, temos que “impor limites”. O que importa são os eles. E as regras. O foco é o comportamento, a ação. A parte de fora, a superfície. Não os motivos, o raciocínio ou o sentimento por detrás daquela forma de agir.
Ressalvo que há muitas pessoas perfeitamente antiadultistas que falam de limites em outro sentido, com uma conotação de respeito a outras pessoas. De mostrar às crianças onde a liberdade delas acaba e a de outras pessoas começa e convidá-las, aos poucos e na medida em que se desenvolvem, a fazer cada vez mais essa reflexão. E eu não tenho problemas com isso; pelo contrário, é o que eu mesma tento sempre fazer.
O meu problema é com o fetiche pelo limite como um fim em si mesmo. O limite cuja razão de ser é praticar o nosso poder sobre a criança, podando aqui e ali para exercício do nosso ego e satisfação da nossa gula de mandar, ou, na melhor das hipóteses, a nossa preguiça de pensar a respeito do que se desenrola diante de nós e avaliar caso a caso a forma como devemos agir. Preguiça de sairmos da nossa zona de conforto e nos perguntarmos se os limites realmente se aplicam àquele local, àquele momento, àquelas circunstâncias. Preguiça de abrir mão das soluções prontas e irrefletidas.
Meu problema são os limites que prestam à educação binária do sim ou não, do pode ou não pode, que não permitem conversa nem argumento; os limites adultistas que se fundamentam na suposta ordem das coisas, no “eu mando e você obedece”.
Limites assim são bastante convenientes para es adultes, já que, com eles, não precisamos pensar, transigir, conversar, entender e nos fazer entender. Podemos focar apenas no que acontece fora da criança. Não precisamos ensinar princípios, passar valores. Só “impor limites”.
Como eu já disse no meu texto “A Criança Má”, “Aparentemente, o que queremos criar não são pessoas íntegras, mas pessoas limitadas. E é bem isso o que sobra dessas crianças cuja “altivez” foi quebrada: pessoas limitadas. Limitadas a reproduzir a violência que sofrem, a obedecer quem lhes parece mais forte”. E a sentirem-se no direito de, de fato, tiranizar quem lhes pareça mais fraco.
É a educação pela covardia e para a covardia. Essa é a que tanto degusta a imposição de “limites”. A educação que diz “você vai se adequar ao que eu quiser, porque eu sou mais forte que você”. E a criança cresce querendo logo ser a pessoa mais forte para desforrar em outra, mais fraca que ela, tudo o que passou. Esperando a vez dela, como eu disse antes. Afinal, como diz a frase muito citada de Paulo Freire, “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”.
As pessoas adoram falar de bullying, mas poucas se mostram dispostas a analisar as origens dele dentro da própria família de quem o pratica, ou mesmo na atitude adultista de muites professores.
Preferem tratar do assunto como se toda a maldade tivesse origem espontânea dentro da criança e, muitas vezes, inclusive, como desastrosa solução para o caso, incentivam pais e mães a adotarem ainda mais das medidas autoritárias e violentas que, se não causaram o problema, certamente contribuíram grandemente para ele.
É como se as crianças e adolescentes vivessem num universo paralelo ao qual não se aplicassem as noções de justiça, igualdade e respeito pelas quais tanto lutamos entre pessoas adultas.
É mesmo assim tão difícil entender que crianças são pessoas?
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