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sábado, 8 de junho de 2013

Alugam-se úteros


André Fernandes

Na Índia, além de turismo religioso para estrangeiros que estão nauseados de uma vida materialista e focada exclusivamente no sucesso profissional, existe outro turismo bem mais rentável: o de barriga de aluguel. Nas maternidades, é uma criança, a cada três dias, que entra na pauta de “exportação”, com um rol de países destinatários que deixaria qualquer empresa de serviço de courier internacional com inveja: Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, Alemanha e Japão. Ao custo de vinte mil dólares por gravidez.

Compreendo a questão que sustenta o “negócio”: se um casal não consegue ter filhos por uma infertilidade natural da mulher, por que não contratar os serviços uterinos de uma "mãe de aluguel", que terá o seu óvulo fecundado pelo espermatozoide do pai contratante? Fiz essa pergunta na sala de aula. Várias respostas surgiram. Uma delas chamou-me mais a atenção, em razão do grau de acuidade intelectual.

“Se um acordo é celebrado livremente entre partes maiores e capazes e não prejudica terceiros, ele está eticamente respaldado”. Em outras palavras, o aluno valeu-se do princípio do dano, elaborado há muito tempo por Stuart Mill, na defesa da ética utilitarista de seu mestre, o filósofo e jurista Jeremy Bentham. Mas será que esse princípio pode ser realmente aplicado para serviços uterinos dispensados a soldo?

De fato, o forte apelo à liberdade da pessoa torna a ética utilitarista muito atraente. Afinal, ela dá vazão à nossa fecunda individualidade, o que justamente nos difere dos outros e que nos faz conhecidos no seio social. Se um casal não pode ter filhos, por qualquer impossibilidade biológica, a opção pela barriga de aluguel, escolhida entre inúmeras outras (como a adoção, por exemplo), seria perfeitamente legítima, já que não há qualquer risco de dano para as partes envolvidas.

Sem dúvida, se não fosse por um “detalhe”. Existe uma parte no “negócio”, cujos interesses sequer foram lembrados: o feto, que vai nascer num hospital de Mumbai e, depois, morar em Manhattan ou em Notting Hill. Pelo preço de vinte mil dólares, como quem compra um par de sapatos ou uma bolsa da Prada ou da Chanel. Com a diferença que não incide imposto de importação, por enquanto...

Também devemos lembrar que o mesmo princípio só valeria se todas as partes habitassem a mesma realidade civilizatória o que, certamente, não existe entre um casal que se dispõe a gastar uma quantia que lhe corresponde a uns “trocados”, mas que, para a contratada do outro lado do planeta, é sua tábua de salvação econômica e social. O desequilíbrio de autonomias é tão flagrante que esse negócio é viciado desde seu começo.

Nem mesmo um eventual equilíbrio econômico entre as partes, supondo que a contratada morasse em qualquer dos países já citados, justificaria a aplicação do mesmo princípio, porque, segundo Mill, o princípio do dano intervém para tutelar a liberdade das pessoas e os interesses de terceiros, no caso, rebaixados à condição de mercadorias de luxo.

E não devidamente valorizados como seres humanos: não se questiona acerca dos futuros efeitos para uma criança no caso de uma precoce separação da mãe biológica. Não se reflete sobre os impactos desse “negócio” em seu desenvolvimento psicológico ou social, sobretudo quando souber que foi “encomendada”. Não se interessa pelo vínculo afetivo que se forma entre a mãe de aluguel e a criança gerada em seu útero. Tudo isso é reduzido a uma cifra “livremente” estabelecida.

Tenho a impressão de que a ética libertária, ao final das contas, provoca o risco de transformar o mundo num grande palco para a realização dos desejos individuais e da própria satisfação pessoal, travestidos da condição de direito, cuja prestação, muitas vezes, passará pela exploração do mais pobre. E não há fumaça de incenso indiano que oculte a vileza dessa contradição. Com respeito à divergência, é o que penso.

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