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sábado, 2 de novembro de 2013

A relação entre o sexo como tabu e a violência sexual - Questão de gênero | Questão de gênero


(Foto: FdE Minas Gerais)
É muito interessante a forma como nossa sociedade lida com o sexo: apesar do assunto ser abordado em todos os veículos midiáticos, seja nas revistas, nos filmes, ou na TV, ele ainda é considerado um grande tabu. O sexo é constantemente glamourizado, sempre com os mesmos discursos. E é assim que é feita a manutenção dos padrões; as mulheres continuam sendo objetificadas, os homens são pressionados a manter uma performance sexual impecável e o sexo continua a ser vendido como um produto que só pode ser obtido com o uso de carros, cosméticos e cervejas.

Mas em uma cultura onde retratar temas sexuais é tão habitual e rotineiro, é muito curioso que a sexualidade seja um assunto tão pouco discutido. Ao invés de celebrar, ou ao menos incentivar o debate livre sobre a sexualidade, os meios de comunicação – incluindo aqueles consumidos por adolescentes – dificilmente possuem qualquer valor didático. Todas as abordagens sobre o tema parecem focar na sensualidade de certos objetos ou situações e dificilmente deixam qualquer espaço para a possibilidade de discussão. E isso tem consequências severas para o bem estar da população, não somente em um nível individual, mas também em termos de coletividade.

Acontece que muitos dos problemas relacionados ao sexo que acometem a sociedade poderiam ser prevenidos se houvesse uma exposição maior sobre certos temas. Por exemplo, não é por acaso que os índices de violência sexual são tão altos: nem mesmo nas aulas de educação sexual é ensinado que quando um dos parceiros não quer, é estupro. Ao contrário, esses valores são invertidos e ensinados às pessoas, mesmo que sutilmente, desde crianças. Até mesmo em gibis ou desenhos animados é possível observar que quando a moça diz “não” é porque ela está fazendo “charme”. Nossa cultura não ensina os jovens a reconhecer os próprios limites e respeitar os dos outros e a ideia de “consentimento” é, para muitos, um conceito desconhecido.

Aliás, esses valores nocivos não atingem todas as pessoas igualmente. As mulheres são grandes vítimas de exploração e objetificação sexual, sendo utilizadas como mercadorias para vender produtos e como enfeites. Os corpos das mulheres são constantemente julgados pela sociedade, que os avaliam em termo de “usabilidade” para o sexo; enquanto isso, o prazer feminino continua a ser um grande tabu, incluindo para muitas das próprias mulheres, que várias vezes chegam à idade adulta sem sequer conhecer a própria anatomia. Para os homens, a prática sexual funciona como uma afirmação do seu gênero e um meio de inflar o próprio ego para impressionar os amigos com sua performance “exemplar”.

Problemas como esses continuam a ser encarados com naturalidade pela sociedade, não somente nas revistas ou na tv, como também nos esportes, nas músicas, na política, em dezenas de áreas profissionais ou até mesmo nas escolas. Isso acaba por causar um efeito “bola-de-neve”: quanto mais as pessoas são expostas a esse tipo de representação, mais naturalizado fica esse tipo de acontecimento. De tanto ver piadas sobre embebedar uma mulher para conseguir levá-la para a cama, as pessoas começam a acreditar que essa é uma atitude não somente aceitável, como também natural e inevitável. E assim, as reclamações daquelas pessoas que sofrem as consequências são cada vez mais desprezadas e os problemas ficam mais e mais difíceis de lidar.

É importante entender que todas essas questões são culturais e o modo como a sociedade compreende e reproduz o sexo é o que permite que tantas vítimas de crimes sexuais sejam responsabilizadas pelo abuso que sofreram, que tantas mulheres sejam tratadas como objetos sexuais ou que tantos homens sintam necessidade de se impor sexualmente. Ignorar o estupro como uma construção social e tratá-lo como simples consequência de uma má índole torna impossível a sua resolução. É necessário combater o problema pela raiz, buscando identificar aquilo que o reforça ou estimula para evitar que esse tipo de comportamento continue a ser imitado e reproduzido. As pessoas são ensinadas desde muito cedo quais papéis sexuais devem adotar e quais comportamentos são aceitáveis socialmente, assumindo que aquilo que elas observam é natural e comum. Assim, elas não abrem mão do status quo nem diante de indícios de insatisfação – até mesmo a própria, como no caso das vitimas de estupro que não se sentem no direito de denunciar seus agressores.

É irônico que a quebra dos tabus sexuais seja considerada uma forma de “moralismo” quando, na verdade, o moralismo hipócrita está na falta de respeito e na imposição de papéis sexuais. Os jovens crescem repletos de culpa e aversão a seus próprios corpos e prendem-se a comportamentos nocivos, se fechando imediatamente diante do que é diferente. Com o sexo visto sempre de forma proibitiva, não é nenhuma surpresa que as pessoas façam julgamento morais severos contra quem se expressa fora dos padrões. Qualquer expressão sexual divergente é considerada ruim, distorcida e repulsiva: é o que acontece com a homossexualidade, com muitos fetiches e, claro, com a autonomia sexual feminina. O problema é agravado ainda mais pelo fato de não haver exposição a opiniões, discursos ou trajetórias de vida diferentes. Em uma sociedade que cobra tanta “masculinidade” dos homens e tanta submissão das mulheres, a possibilidade de empoderamento não está ao alcance de todos.

Enquanto o sexo continua a ser tratado somente sob panos quentes, valores morais violentos e questionáveis continuam a ser perpetuados, misturados a uma mentalidade que promove o poder imposto sobre o gênero feminino. É por isso que é tão urgente dialogar mais sobre sexo, para que a violência sexual seja identificada como parte de um sistema opressor. Estupro não é uma questão de “instinto”, “descontrole” ou “provocação”; na verdade, argumentos recorrentes como esses nos revelam a perigosa face da ausência de debates sobre o tema. É por trás dessas opiniões de má fé que estupradores se escondem e são protegidos, pois nossa cultura não oferece a contextualização assertiva necessária para que sejam confrontados. Na ausência de informações positivas e essenciais sobre o assunto, o aprendizado fica por conta da imitação daquilo que é problemático.

Não é que uma simples discussão sobre sexualidade acabaria com todos os problemas da sociedade; seria necessária uma ação intensiva, incluindo projetos educacionais nas escolas, palestras gratuitas, informações acessíveis promovidas pelo governo na televisão e na internet e um grande incentivo para que as pessoas se interessem em aprender, abandonando o sexismo. Mesmo assim, é claro que o problema não seria completamente erradicado. No entanto, uma parcela respeitável da população nutriria ideias diferentes se tivessem referências positivas em que se espelhar. Mesmo um simples alerta de conscientização, por exemplo, proibindo a associação entre bebidas alcoólicas e “sexo fácil”, já resultaria em uma melhora significativa, já que mais pessoas entenderiam que embebedar alguém para fazer sexo é estupro.

Com a promoção de mais conhecimento e abertura para se falar sobre sexo, não somente ocorreria uma redução nos níveis epidêmicos de violência, como também as pessoas se sentiriam mais satisfeitas consigo mesmas. Afinal, sem as amarras da sociedade e cristalização dos papéis de gênero, todos seriam mais livres para viver a própria sexualidade plenamente, sem medo de repressão ou pudor. No final das contas, nenhuma pessoa sai perdendo; todos só tem a ganhar em satisfação sexual, segurança e qualidade de vida. Não é fácil transformar uma cultura, mas nenhuma mudança é impossível se dermos os primeiros passos.

http://revistaforum.com.br/questaodegenero/2013/11/01/a-relacao-entre-o-sexo-como-tabu-e-a-violencia-sexual/

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