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domingo, 8 de dezembro de 2013

Credibilidade da palavra da vítima como prova de violência sexual, por Kenarik Boujikian


Juiza do TJSP Kenarik Boujikian, foto de Gláucio Dettmar do CNJ
Juíza do TJSP, Kenarik Boujikian

(Foto: Gláucio Dettmar / CNJ)
A história de luta das mulheres indica grandes avanços em sua situação social, mas o grau de violência contra elas permanece extremado, particularmente quando se trata da violência sexual. E, nesses casos, sabemos que a solução em termos processuais penais está a depender da prova produzida no processo.

Pesquisas apontam para a forte discriminação que as mulheres sofrem quando vítimas de crimes sexuais, no que se refere à valoração que se faz da prova produzida.

A solução justa para esses crimes depende muito da compreensão por parte dos operadores do Direito sobre a necessidade de dar maior proteção ao bem jurídico tutelado: a dignidade sexual, como prisma da dignidade humana, particularmente a autodeterminação sexual da mulher, nos aspectos da liberdade e da autonomia.

A Constituição Federal estabelece a dignidade humana como um dos fundamentos da República. Acrescentem-se os tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil, que estabelecem direitos das mulheres, além da rede de direitos e de proteção, de níveis internacional e regional, pelos quais o Brasil assumiu compromissos.

Para os casos de violência sexual, os princípios vinculantes da igualdade e não-discriminação são ponto central e foram estabelecidos na Constituição Federal e em diversos instrumentos que firmam o direito das mulheres de terem um recurso judicial eficaz e célere (Convenção Americana sobre Direitos HumanosDeclaração Americana dos Direitos e Deveres do HomemConvenção de Belém do Pará), sendo que as obrigações assumidas pelo Estado Brasileiro vinculam os três poderes.

Mas sabemos que há uma grande distância “entre a mão e o gesto”, pois embora tenhamos um reconhecimento formal sobre a necessidade de combate à violência sexual, a resposta estatal oferecida não tem nível de correspondência no Sistema de Justiça.

A baixa punibilidade é um padrão, como consta de relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH); há pouca utilização do Sistema de Justiça pelas mulheres vítimas, que não depositam confiança nas instâncias judiciais, o que acaba por reforçar a insegurança. Perpetua-se, assim, a naturalização da violência sexual contra as mulheres.

A subnotificação dos crimes sexuais é uma realidade mundial. O percentual de informação aos órgãos de investigação da ocorrência dos crimes sexuais, cujas vítimas em sua maioria são mulheres (adultas, adolescentes e meninas), é infinitamente menor que o real. Entre as razões apontadas por pesquisadores para que o registro não seja efetuado estão: vergonha, sentimento de autorresponsabilização, temor em enfrentar o fato perante os tribunais, carga emocional e física da agressão e desconfiança sobre o sistema, estimando-se que o procedimento judicial é ineficaz para esclarecer os fatos e passar por eles acarreta mais danos do que benefícios.

Credibilidade da palavra da vítima
Os processos de crimes sexuais, sabidamente praticados de forma clandestina – pois a violação da dignidade da mulher geralmente ocorre em locais fechados, sem possibilidade de presença de testemunhas -, têm na palavra da vítima a viga mestra. Por certo ela não está isenta dos requisitos de verossimilidade, coerência e plausibilidade. Mas, nestes delitos, a declaração coerente da vítima deve ter valor decisivo.

Por certo que a prova pericial tem grande relevo, mas nem todos os crimes sexuais deixam vestígio. Nestas situações, a maior atenção deve ser voltada para as declarações da vítima e, caso ela tenha fornecido dados coesos e harmônicos, não há razão alguma para afastar de credibilidade referida prova.
A palavra da vítima tem valor exponencial, desde que não possua qualquer vício que possa maculá-la. Mas vício não se confunde com discriminação e com preconceito. Em muitos processos, o que se vê é que a vítima é quem é julgada na valoração da prova, quando se afirma, por exemplo, que um homem sozinho não pode agredir sexualmente a mulher; que ela poderia reagir; que ela despertou o instinto sexual; que ela usou roupas provocativas etc.
No patamar civilizatório abraçado pelo Estado brasileiro, que implica o reconhecimento da mulher como sujeito de direitos humanos em posição igualitária, no qual é inadmissível que tenha a sua autodeterminação sexual violada, é necessário que “o gesto se aproxime da mão”.

Indispensável que o Estado crie mecanismos para que as mulheres vítimas de violência sexual sintam-se minimamente fortalecidas para denunciar o fato à polícia. É preciso um arcabouço de infraestrutura adequada, para que, desde o primeiro momento, existam estratégias de apoio reais. Nesta medida, urge a criação de um suporte assistencial, psicológico e jurídico, desde o primeiro instante e que deve perdurar durante e após o processo.

Aos desgastes emocionais, físicos e econômicos pelos quais passam as vítimas há que se ter a devida resposta do Estado.

Ainda, necessária a realização de cursos de capacitação para todos os operadores do Sistema de Justiça (defensores, promotores e juízes), voltados à compreensão de gênero, da história das mulheres, para que se cumpra a árdua tarefa que é derrogar a moral determinante, instituída pelo poder patriarcal e fundamentada na discriminação de gênero.

O Estado tem o dever de adotar os meios apropriados para prevenir, punir e erradicar a violência sexual contra as mulheres. A compreensão de que o corpo da mulher é seu solo sagrado, que é o local que habita a sua liberdade plena, é necessária para que o grau de discriminação contra as mulheres transmude e passemos a dar-lhes efetivo amparo social e estatal.

Kenarik Boujikian é cofundadora e presidenta da Associação Juízes para a Democracia e magistrada no Tribunal de Justiça de São Paulo.

http://www.compromissoeatitude.org.br/credibilidade-da-palavra-da-vitima-como-prova-de-violencia-sexual-por-kenarik-boujikian/

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