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domingo, 5 de abril de 2015

Cozinha profissional é lugar de mulher?

abril 2, 2015

Quando cômodo para os homens, a cozinha é o lugar doméstico onde a mulher deve servir em silêncio; mas quando o trabalho com as panelas se torna uma carreira promissora como chefe, as colheres e os temperos rapidamente deixam de ser “coisa de mulher”.

Por Jarid Arraes

O clichê machista de que “lugar de mulher é na cozinha” é uma afirmação que se concretiza por conveniência. Quando cômodo para os homens, a cozinha é o lugar doméstico onde a mulher deve servir em silêncio; mas quando o trabalho com as panelas se torna uma carreira promissora como chefe, as colheres e os temperos rapidamente deixam de ser “coisa de mulher”.

As mulheres que trabalham como chefes de cozinha enfrentam uma série de preconceitos cotidianos e precisam lutar para conquistar o mesmo espaço que os chefes do gênero masculino têm garantidos. Pode parecer irônico, mas, para quem é machista, nem toda cozinha é lugar de mulher.

Lisandra Amaral, cozinheira e chefe de cozinha em São Paulo, entende bem sobre essas questões incômodas. Também feminista, Amaral aponta para a misoginia escondida na rotina dos restaurantes e politiza o tema, questionando pontos como a desigualdade de salários e a falta de reconhecimento das chefes mulheres. A entrevista, na íntegra, pode ser lida abaixo:
Lisandra Amaral (Foto: Arquivo Pessoal)
Lisandra Amaral (Foto: Arquivo Pessoal)

Revista Fórum – Como começou seu interesse pela área da culinária e por ser chefe de cozinha?

Lisandra Amaral - Costumo dizer que isso aconteceu de forma simples, sem ser simplista. Sou economista de primeira formação, mas cozinhar aconteceu de forma natural. Isso porque minha mãe sempre cozinhou em casa e a nossa relação familiar foi construída em volta da mesa, dentro da cozinha. Esse é um processo cultural muito legal, pelo qual acredito que quase todos nós tenhamos passado e de que eu gosto muito. Esse dia-a-dia, essa dinâmica de crescimento ao redor de comida gostosa e conversas prazerosas sempre me chamaram a atenção, aí decidi que dedicaria minha vida a isso. É uma força motriz, sabe? O ato de cozinhar, transformar um assado, um cozido e, ao fim, pensar: “Isso é amor! É sentimento que tá aí, materializado, cheio de temperos…”. Decidi fazer o curso de gastronomia e em 2012 me formei pelo Senac. De lá pra cá, viajei, trabalhei em algumas cozinhas, chefiei duas delas e voltei a estudar, especialmente a identidade e técnicas da cozinha brasileira.

Fórum – Para se tornar chefe, você enfrentou algum tipo de preconceito ou machismo?

Amaral - Para a decisão de estudar gastronomia ou entrar em uma cozinha profissional, não passei por algo específico, não. Mas a experiência é bastante frustrante. O ambiente da cozinha é pesado, é muito dinâmico, é um tanto militar, mas com muito barulho e temperaturas altas. Corre gente de todos os lados e, para que estas pessoas não se acertem pelo caminho, existe um balé. Como já fui bailarina também, eu acho uma semelhança incrível com a dança: tem que ser leve, mas tem que ser cronometrado, harmônico. Acontece que muitas vezes isso pressupõe hierarquia (daí a coisa militar com a qual tenho alguns problemas, outras discordâncias) e, no caso de ser mulher no comando, fica ainda pior.

Fórum – Como tem sido sua experiência com o machismo nesses ambientes?

Amaral - Sempre foi comum que os homens demorassem a obedecer os comandos, se referissem a mim como “mocinha”, “menininha”, ou que eu ouvisse que a panela estava muito pesada, ou que eles carregariam as compras para o estoque, pois as caixas eram grandes. Há também aquele comentário misógino recorrente: “As panelas são pesadas. Quero ver se você aguenta limpar a chapa ou lavar a coifa. Isso não é trabalho de mulher!”. Passei por isso algumas vezes, sim, e é bem difícil. Há ainda a necessidade de abandonar alguns papéis de gênero impostos socialmente para as mulheres: cabelos presos, unhas sempre curtas e sem esmaltes, as mãos ficam feias, queimadas e marcadas, nunca usamos maquiagem e estamos sempre suadas. As piadas recorrentes, então, atingem nossa integridade física diretamente, mesmo que esta tenha sido antes quebrada pelo próprio ofício de cozinheira.

Fórum – Nas cozinhas profissionais há mais homens do que mulheres?

Amaral - A realidade é bem superior para os homens. Isso porque as mulheres sempre estiveram à frente das cozinhas domésticas, mas a origem das cozinhas industriais foi dada pelos homens, especialmente nos períodos de guerras. E desde então a participação profissional das mulheres segue alguns critérios bem específicos: elas podiam trabalhar nas pias (o que é um paradoxo maluco, pois as panelas pesadas e as chapas também passam por ali), lavando louça e complementando os serviços de faxina dos estabelecimentos, e na cozinha fria, mais especificamente na confeitaria. Isso também sempre me incomodou, pois o discurso é de que as mulheres são mais delicadas e por isso são boas confeiteiras ou doceiras e finalizam bem um prato (mas não podem provar as guloseimas, pra não afetar a silhueta). Não, não é assim. E não falo isso por ser péssima confeiteira [risos]. Falo isso pelo simples fato: somos cozinheiros e aprendemos as mesmas técnicas. As habilidades são diferentes e isso independe completamente de gênero.

São pequenos detalhes da divisão do trabalho em cozinha que se tornam grandes quando pensamos no tema. A cozinha profissional é bastante machista e espera que sejamos sempre gentis e polidas com nossa equipe, enquanto aos homens chefes é permitido que gritem e se exaltem e por isso são mais respeitados.

Fórum – Se o ato de cozinhar ainda é considerado algo designado para as mulheres, por que no âmbito profissional os homens recebem mais destaque e respeito?

Amaral - Para ambos os sexos, a profissionalização da cozinha é um fenômeno recente no Brasil, tem cerca de 20 anos. Já a divisão do trabalho tem raízes históricas, demonstradas na frase célebre “lugar de mulher é na cozinha!”, ou seja, a mulher tem função de cozinhar para a família, função estritamente doméstica, enquanto ao homem fica a função de cozinhar profissionalmente. Ainda hoje, essa máxima é replicada sempre que tocamos no tema, inclusive por críticos da área. Dizem que a profissão de cozinheiro é extenuante e exige muita força física e, por isso, é mais propícia aos homens.

Na minha opinião, a questão é mais embaixo. A revolução industrial, que proletarizou (também) as mulheres trouxe uma modernidade que anula e extirpa as mulheres das cozinhas industriais. Vejo como uma clara reação burguesa à necessidade de que as mulheres voltassem a cuidar somente das cozinhas e dos afazeres do lar. E é tão contraditório isso que, se formos pensar nas tarefas diárias de um chefe de cozinha – planejamento, cardápio, compras, comando – elas são as mesmas de uma cozinheira doméstica. Ou seja, por que somos excluídas das cozinhas profissionais? Por que não recebemos o mesmo destaque? Ao receber destaque, por que há sempre de ser considerada uma delicadeza propriamente feminina?

Fórum – Isso também se reflete nas listas de melhores chefes ou restaurantes do mundo?

Amaral - Se você abrir todas essas listas, provavelmente vai ver alguma mulher ali. Dá até a impressão de que quem faz essas listas se lembrou de incluir duas mulheres naquele ano… Ufa, né? [Risos]. E a coisa piora. O maior prêmio de gastronomia do mundo anuncia, desde 2011, a melhor chefe mulher. Ok, vamos por partes. Sobre as listas: podemos falar disso outra hora. Não gosto muito dessas premiações, mas não vem ao caso agora, embora num primeiro momento eu tenha pensado: “Que máximo! Temos uma grande chefe brasileira como representante!”.

Mas logo depois, penso se os leitores desta lista notam o quão arraigado está o machismo aí. Me lembro que na primeira vez que vi este prêmio pensei comigo: “Será que eu uso meu ovário pra cozinhar? As trompas de Falópio, talvez?”. É bastante óbvio que a diferença entre os profissionais é questão de habilidade e talento. Ou não.

Estamos falando aqui da participação de mulheres nos restaurantes considerados sofisticados. Se levarmos em conta os restaurantes tipo “quilos” ou “buffets”, a participação das mulheres, em termos percentuais, aumenta consideravelmente. Novamente, a contradição: nestes estabelecimentos, a alimentação é mais próxima da comida de casa (comfort food), mais simples, com “gostinho de vó”, e mais uma vez fica evidenciada a responsabilidade feminina de cozinhar e nutrir a família.

Fórum – Por que as mulheres chefes de cozinha são também um assunto importante para o Feminismo?

Amaral - Eu penso que chegará um dia em que a diferença entre homem e mulher não prestigiará talentos, como também ocorre nestas listas “bests”. Mas por hora precisamos reconhecer que o trabalho é árduo; afinal, ficar cerca de 10h por dia em pé em frente a um forno quente é tão chato e cansativo quanto o cheiro de fritura nas roupas ou cabelos. Mas, principalmente, considerar que isso acontece com o profissional de cozinha e não com a mulher ou com o homem, não com o chefe de cozinha ou a cozinheira, havendo diferenças de gênero. Precisamos entender que aquela que está no comando da cozinha é simplesmente sua chefe, não sendo por isso menos forte, menos capaz ou mais delicada que o outro.

E isso é tão claro e importante pra mim que eu penso que toda a cadeia produtiva tenha que mudar neste sentido. Os pequenos produtores, aquelas cozinheiras dos interiores remotos que trazem consigo um conhecimento mágico dos processos, as cooperativas de pescadores, enfim, todos os setores precisam mudar e reconhecer a participação de mulheres igualmente. Não só nas atividades e na divisão do trabalho, mas na equiparação salarial também. É diferente!

Me lembrei agora do funcionamento de uma casa em que trabalhei, sobre os salários dos meus funcionários. Lá, além de serem contratados somente homens para o turno da noite, eles recebiam um percentual extra, pois executavam tarefas mais pesadas neste turno. Olha, não me pergunte quais eram essas tarefas. Eu realmente não sei te responder… É muito claro que a escolha é machista e velada por suposições que diminuem as mulheres (“os homens podem ir embora mais tarde pra casa, é menos perigoso”) e desqualificam o próprio machismo. Se compactuamos com ele, se aceitamos que essa diferença existe, por que é como está? Por que então não discutimos essas diferenças ou o motivo pelo qual alguma mulher não se sente segura ao sair do trabalho às 2 da manhã? A raiz está aí. É uma constante e é cíclica. Sobremaneira, reconhecer o trabalho feminino nas cozinhas é trazer à luz o envolvimento claro destas mulheres em atividades que no senso comum são do universo masculino e, para tanto, temos que observar que essas percepções estão totalmente atadas à desigualdade.

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