12 de abril de 2015
Por José Fernando Simão
a)Afeto prestigiado
Por José Fernando Simão
a)Afeto prestigiado
É por isso que na esteira desse entendimento, outro se consolidou. O homem que sabe não ser pai de certa pessoa e a reconhece como filho, ou seja, opta por exercer a função paterna, mesmo sem vínculos biológicos, não pode depois desfazer tal vínculo voluntariamente construído. Isso se verifica, nos casos prático, quando há uma briga entre marido e mulher ou companheiro e companheira e o homem decide negar a paternidade apesar de ter se comportado como pai por muito tempo.
A síntese da compreensão do STJ sobre a questão e o prestígio que tem o afeto vem das palavras da Ministra Nancy Andrighi[4]:
“Não há como desfazer um ato realizado com perfeita demonstração de vontade, como ocorreu no caso dos autos, em que o próprio recorrido [o pai não-biológico] manifestou que sabia não haver vínculo biológico com a criança, e, mesmo assim, reconheceu-a como sua filha. Se o fez com o intuito de agradar sua então mulher, tal motivação não caracteriza coação, como alegou de início. O recorrido jamais poderia valer-se de uma falsidade por ele mesmo perpetrada, o que, a seu ver, corresponderia a utilizar-se de sua própria torpeza para benefício próprio, o que realmente seria muito conveniente, em prejuízo direto à criança envolvida. É preciso ter em mente a salvaguarda dos interesses dos pequenos e que a ambivalência nas recusas de paternidade são particularmente mutilantes para a identidade das crianças. Isso impõe ao julgador desvelo no exame das peculiaridades de cada processo, no sentido de tornar, o quanto possível, perenes os vínculos e alicerces na vida em desenvolvimento”.
Em nova oportunidade, quando terceiro (nem o pai, nem o filho) pretende ver o vínculo socioafetivo desconstituído para poder receber a herança ou quota maior (ação com objetivo puramente patrimonial), o mesmo STJ valoriza o afeto:
“O pedido deduzido por irmão, que visa alterar o registro de nascimento de sua irmã, atualmente com mais de 60 anos de idade, para dele excluir o pai comum, deve ser apreciado à luz da verdade socioafetiva, mormente quando decorridos mais de 40 anos do ato inquinado de falso, que foi praticado pelo pai registral sem a concorrência da filha. II. Mesmo na ausência de ascendência genética, o registro da recorrida como filha, realizado de forma consciente, consolidou a filiação socioafetiva, devendo essa relação de fato ser reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a parentalidade que nasce de uma decisão espontânea, deve ter guarida no Direito de Família. III. O exercício de direito potestativo daquele que estabelece uma filiação socioafetiva, pela sua própria natureza, não pode ser questionado por seu filho biológico, mesmo na hipótese de indevida declaração no assento de nascimento da recorrida. IV.A falta de interesse de agir que determina a carência de ação, é extraída, tão só, das afirmações daquele que ajuíza a demanda – in status assertionis –, em exercício de abstração que não engloba as provas produzidas no processo, porquanto a incursão em seara probatória determinará a resolução de mérito, nos precisos termos do artigo 269, I, do Código de Processo Civil.”[5]
Tais pleitos, nos casos concretos, são manejados por irmãos que, apesar de longa convivência e relação de afeto, pretendem receber maior quinhão sucessório por meio da exclusão do filho socioafetivo, ou seja, como se houvesse prevalência da consanguinidade.
A primeira parte dessa reflexão indica que sim, o afeto evidentemente é um valor jurídico de acordo com as decisões do STJ e tem prestígio como fundamento das decisões.
b)Afeto desprestigiado
Contudo, há ainda uma reflexão que se faz necessária. Se o pai registral da criança descobre que não o é em termos biológicos, que houve erro ou dolo quando do registro, pode ele impugnar a paternidade do filho? A resposta mudaria se o tempo já houvesse consilidado vínculos afetivos?
A decisão já antiga do STJ indicava o seguinte:
DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. EXAME DE DNA. - Tem-se como perfeitamente demonstrado o vício de consentimento a que foi levado a incorrer o suposto pai, quando induzido a erro ao proceder ao registro da criança, acreditando se tratar de filho biológico. - A realização do exame pelo método DNA a comprovar cientificamente a inexistência do vínculo genético, confere ao marido a possibilidade de obter, por meio de ação negatória de paternidade, a anulação do registro ocorrido com vício de consentimento. - A regra expressa no art. 1.601 do CC/02, estabelece a imprescritibilidade da ação do marido de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, para afastar a presunção da paternidade. – Não pode prevalecer a verdade fictícia quando maculada pela verdade real e incontestável, calcada em prova de robusta certeza, como o é o exame genético pelo método DNA. – E mesmo considerando a prevalência dos interesses da criança que deve nortear a condução do processo em que se discute de um lado o direito do pai de negar a paternidade em razão do estabelecimento da verdade biológica e, de outro, o direito da criança de ter preservado seu estado de filiação, verifica-se que não há prejuízo para esta, porquanto à menor socorre o direito de perseguir a verdade real em ação investigatória de paternidade, para valer-se, aí sim, do direito indisponível de reconhecimento do estado de filiação e das consequências, inclusive materiais, daí advindas. Recurso especial conhecido e provido.[6]
A decisão de 2007 gera o seguinte efeito: o vício de consentimento põe fim à paternidade construída por dois (pai e filho) em razão da vontade de um (pai) muitas vezes porque foi enganado por um terceiro (mãe da criança).
A situação do filho é simples assim. Passa a ser órfão de pai vivo. A decisão pode apagar o vínculo jurídico, mas jamais o afetivo construído. O filho têm um pai em termos afetivos, mas fica órfão em termos jurídicos.
Em termos de dialética, costuma-se afirmar que não se pode forçar alguém que não quer a ser pai. Então, um forte argumento que se utiliza é o seguinte: alguém pode ser obrigado a ser pai contra sua vontade? A resposta é pode.
Quando em razão de sexo eventual um homem engravida uma mulher, será ele pai da criança querendo ou não, e dessa paternidade decorrerão diversas responsabilidades. Quando um casal casado ou em união estável mantém relações sexuais e nasce um filho, o Direito não pergunta se ele era querido, desejado ou não. Ele é pai da criança.
Quando um pai tem um desencanto com seu filho, quer seja em decorrência de atos por ele praticados ou mesmo por não seguir seus modelos, o Direito admite que rompa os vínculos jurídicos? Não, não admite.
É verdade que o sangue latino tão bem retratado por Machado de Assis em “Dom Casmurro” evidencia que o homem não consegue viver com a dúvida da traição. É algo demasiadamente desconcertante para alguns. Bentinho via no filho as marcas indeléveis da traição de Capitu, com “olhos de ressaca, oblíqua e dissimulada”.
É de se lembrar que se a decisão em que o homem enganado pode negar a paternidade do filho efetivamente for uma constante, no caso relatado pela imprensa (médico Roger Abdelmassih) em que as mulheres foram enganadas, assim como seus maridos pelo médico, poderiam ambos negar a paternidade da criança nascida pela técnica heteróloga quando o casal pensava ser homóloga? A resposta pela orientação do STJ seria positiva, pois ambos foram enganados por um terceiro (médico) e a mulher concebeu um filho com óvulo que não é dela (logo DNA é de outra) e com um espermatozóide de um terceiro (logo pelo exame de DNA o pai biológico é outro).
José Fernando Simão é advogado, diretor do conselho consultivo do IBDFAM e professor da Universidade de São Paulo e da Escola Paulista de Direito.
Revista Consultor Jurídico
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