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domingo, 3 de novembro de 2013

O cúmulo da ousadia: a mãe queria ser a primeira

Já reparou como numa casa cheia a mãe é quase sempre a última fazer alguma coisa?

ISABEL CLEMENTE

O plano estava traçado e, em tese, parecia simples. Precisava apenas colocá-lo em prática. Muitas mulheres já tinham feito isso antes dela. Nem precisava de tanta coragem assim, vai. A bem da verdade, ela não conhecia nenhuma história parecida, mas queria acreditar nelas. A utopia é a arma dos fortes e a audácia, a antesala do ineditismo. É só agir naturalmente, pensou, e bateria seu próprio recorde.

Ensaiava a semana toda diante do espelho sua estratégia subversiva. Estava prestes a pecar, disse para si mesma, sorrindo com o canto da boca. Ela levantaria calmamente, olharia um a um e diria “boa noite, boa noite e boa noite“, com aquele jeito Julie Andrews. E, naquela noite, ela seria a primeira a dormir.

Pensando bem, fora de uma canção, ninguém diz três “boa noites“ sem gerar comoção, algazarra e gritaria. Soaria como provocação e o resultado óbvio seriam crises, choros, crianças repentinamente carentes e marido inesperadamente irritado.

Melhor não chamar a atenção. Levantaria em silêncio absoluto, como quem vai buscar um copo d`água na cozinha e não voltaria mais. Simples assim e sem avisar, com sobrancelhas levemente arqueadas a la Greta Garbo para reforçar o ar de sua determinação. Riu sozinha e alto. Até todo mundo se dar conta, ela estaria dormindo, ancorada num sono profundo e restaurador. Missão cumprida com louvor. Talvez eles ficassem comovidos pensando “ela deve estar mal mesmo, melhor deixar“. E ficariam todos em silêncio obsequioso, velando o cansaço da mamãe.

Mas havia uma hipótese plausível e perigosa. Alguém suspeitaria de ato tão sub-reptício e, nas melhor das intenções, chegaria perto perguntando “mamãe, você tá bem?“ Daí mamãe teria que acordar para responder que "sim, estou viva, obrigada, meu bem", e já era.

Talvez fosse melhor sair da sala dando uma desculpa.“Vou ali no quarto buscar um livro e já volto“. O “já volto“ deixaria os filhos e o marido ocupados com uma satisfação vaga enquanto ela mudaria a camisola, escovaria os dentes, apagaria a luz, fecharia a porta e deitaria para dormir. Havia um risco embutido nessa estratégia também. Distraídos, deixariam o tempo passar e sem mamãe dizendo que é hora de dormir e encerrar a brincadeira, ninguém se daria conta do que precisava fazer. A hora avançaria impiedosa trazendo cansaço e irritação para dentro de casa. O pai ia tentar abreviar o ritual do sono, crianças bateriam o pé insistindo em lanchinhos, para depois escovar dentinhos, limpar bumbumzinhos, mudar roupinhas, contar historinhas e a crise estaria instalada. Péssima ideia, péssima ideia.

E se ela simplesmente admitisse com a maior naturalidade? Gente, estou muito cansada, não estou a fim de esperar vocês dormirem, nem de dar lanche, resolver conflitos, elaborar cardápios, escovar os dentes, contar história, fazer massagem, trazer água, apagar a luz, levar ao banheiro, apagar a luz de novo. Hoje não, tá bom? Só hoje...Preciso dormir neste exato momento e o exato momento acabou de passar. Viram só? Hoje vocês se viram sem mim, né? Não posso ouvir miado, chilique, resmungo, chorinho, choradeira, criança implorando, beijinho...nada". 

Restaria ao marido referendar o discurso e, às crianças, colaborar, sem protestar.

O espelho lhe dizia, porém, que essa sonhada reação da família era um tanto improvável.

E se ela se levantasse, desse um beijo em cada uma das crianças e sussurrasse no ouvido delas assim “tenho um plano"? Eu vou me esconder embaixo das cobertas e ninguém fala nada. Quando papai perguntar, vocês dizem "mamãe está dormindo há muito tempo, ué".

Criança adora ser cúmplice de travessura. Dormir antes de todos seria a suprema travessura da mamãe. Daí o pai seria o único a não ser avisado com antecedência. As meninas seriam compreensivas e facilitariam todo o procedimento do sono. Ele nem notaria a ausência da mulher. 

Sonhando acordada, voltou a encarar o espelho procurando uma solução mais plausível, mais natural pelo menos. 

E se ela avisasse ao marido, companheiro e cúmplice de toda a história? Faria a pior cara de cansaço do mundo para suscitar pena? Não. Falaria logo irritada para mostrar que não tem negociação? Faria uma cara boazinha como quem dá uma informação irrelevante?

“Não esquece de oferecer um lanchinho. beijo“. 

Tudo bem simples, tudo natural, como na velha canção?

Também não.

Decidiu ser direta e solene. Sem intimidade, ficaria mais fácil, apostou. E discursou como se estivesse em cadeia nacional: 

“São 21 horas, horário de Brasília, e percebo que nenhuma das crianças está com pinta de que vai dormir tão cedo. Diante dessa situação incontornável, anuncio que vou me deitar. Não quero ser seguida por quem quer que seja. Apertem o botão de unfollow neste minuto. Não venham tirar dúvidas comigo, a não ser que seja um caso de vida ou morte. O uso da suíte está suspenso a partir de agora porque o barulho da porta pode me acordar. Não gostaria de ouvir chuveiro, descarga, gritos, choros, gargalhadas meu nome ou minha alcunha nem em sussurro, porque sussurros, descargas e chuveiradas me acordam. Tenho o sono leve e, se eu não conseguir descansar, terei um piripaque ou quem sabe até um treco. Piripaques e trecos podem transformar uma doce mãe num monstro horroroso. Nenhum de vocês gostaria de encarar esta figura verde diariamente. É inaceitável que eu tenha atingido este estado de fadiga. Desta forma, espero que respeitem minha decisão, soberana, individual, mas capaz de beneficiar a coletividade em muito pouco tempo. Vocês notarão uma melhora geral no meu estado de espírito e no meu humor logo pela manhã. Tenho um altíssimo poder de regeneração. Só peço uma chance. Grata pela atenção e pela compreensão de todos vocês. Boa noite“.

Surpresos, crianças e marido ficaram em silêncio absoluto e a mãe dormiu feliz, umas dez horas seguidas e, mesmo dormindo demais, acordou sem dores de cabeça, nas costas ou no pescoço. Um milagre. 

Agora a vida como ela é.

Passava das oito da noite e eu disse inesperadamente como quem teve uma ideia inédita.

“Já sei! Vou dormir“.

Como se tivesse ouvido uma piada, meu marido gargalhou. A filha mais velha, que não me levou a sério, comentou para si mesma “até parece“. Impávida, como quem diz “me aguardem“, rumei para o quarto. Fechei a porta, apaguei a luz e me joguei de roupa e tudo na cama como um soldado ferido de guerra. Sem banho ou jantar. Respirei fundo. Senti o lençol abraçando meu corpo, o colchão se moldando à minha alma. Todos os meus músculos disseram "aaaahh..." e um estranho silêncio se fez. Por pouco tempo. Em minutos, ouvi gritos, correria, brigas de meninas, criança chamando do banheiro, criança acabou de fazer algo no banheiro, caramba, ninguém vai limpar? O pai gritou que estava a caminho e eu percebi que ninguém tinha me levado a sério. A confusão do lado de fora não era compatível com meus planos. De repente, a porta do quarto foi escancarada, um faixo de luz entrou junto com uma pequena criatura de 4 anos que chegou bem perto do meu rosto e ficou me observando na penumbra, tentando identificar meus verdadeiros sentimentos. Senti seu hálito infantil. 

“Mamãe?“ - ela sussurrou.
Silêncio.
"Mamãe?" - disse a criança, elevando o tom e respirando bem perto de mim. 
“Ma-mãe?“ - disse, impaciente.
Silêncio.
“MAMA-NHE!!!“ - gritou, tentando abrir meu olho com os dedinhos.
“Estou dormindo“, resmunguei.
“Mamãe, deixa de bobeirinha“.

Eu sabia. Era ousadia demais.

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