As pessoas se deitam lado a lado, noite após noite, cheias de queixas, ressentimentos e silêncio
IVAN MARTINS
02/11/2016
Em vez de um anjo da guarda, eu queria ter nos bastidores da minha vida uma equipe de roteiristas profissionais, com poder de mudar minha história.
Cada vez que eu estivesse a ponto de fazer algo definitivo, a cena seria congelada ao meu redor – todos parados como estátuas, no meio de um gesto ou de uma palavra – e eu ouviria ponderações sobre a melhor maneira de agir.
“Se você disser isso, ela irá embora em uma semana”, avisaria o roteirista, de prancheta na mão, ajeitando os óculos de acetato azul. “É isso mesmo que você deseja?” Mesmo hesitando, eu diria, “sim”, ao que ele, sorrindo, falaria em voz alta, para alguém oculto atrás das paredes. “OK, deixa correr!” E a cena teria sequência, para o bem ou para o mal.
Imagine de quantas dores e arrependimentos seríamos poupados se a vida nos desse essa oportunidade. Os roteiristas saberiam o que as alternativas de futuro nos reservam. Assim, ajudariam, com pequenas advertências e empurrões, a tomarmos o caminho mais divertido até o final feliz: todos sorrindo, subiriam os letreiros, aumentaria a música, the end.
Só que as coisas não são assim.
A gente lida todos os dias com situações que vão afetar o resto da nossa vida, armados com pouca experiência, limitada inteligência e o nosso temperamento, que tanto ajuda quanto atrapalha. Sempre sob pressão do tempo.
Ninguém nos dá meia hora para reagir a um insulto ou responder a uma pergunta simples: você me ama? A resposta tem de vir na hora, precisa e certeira, ou adeus, pode esquecer. É duro tomar decisões com a realidade em movimento, mas é isso que nos cabe.
Por causa da pressa e do improviso, sinto que a minha vida é uma orgia de conversas inacabadas.
Outro dia, faz pouco, terminou um grande amor, e ainda acho que não disse tudo, que não expliquei o suficiente. Todos os dias me pego conversando com quem passou pela minha vida sem ouvir a frase verdadeira, o pedido sincero de desculpas, a confissão absoluta, a declaração arrebatada, a ironia cortante, o cala-boca contumaz.
Os diálogos inexistentes me perseguem como uma matilha de cachorros de rua.
Uma mulher que eu amei, e que já não me amava, disse que falava comigo todos os dias. Em silêncio, no trabalho. Em voz alta, em casa. Comigo acontecia o mesmo. Meus diálogos com ela se estendiam noite adentro, cheio de idas e vindas, labirínticos e nostálgicos. Eu precisava dizer coisas que não tivera coragem ou perspicácia de dizer ao seu tempo. E as dizia. Às vezes, no meio de um sonho, ainda digo. Até acordado penso em frases poderosas que refariam fatos e removeriam o tempo e os sentimentos. Frases que nunca serão ditas.
Outro dia, conversando no sofá de casa, alguém me lembrou de outras conversas que jamais ocorrerão: entre pai e filha, entre amiga e amigo, mesmo entre irmãos que se amam. No coração das relações mais íntimas vivem palavras terríveis, que nunca serão pronunciadas. Para quê? A verdade tem o dom de destruir, revelando o oposto de nossos afetos. Melhor calar a boca.
No interior das relações amorosas, ocorre o contrário: o silêncio nos adoece. As frases que não são ditas se acumulam e impedem a circulação dos sentimentos. As pessoas se deitam lado a lado, caladas, noite após noite, cheias de queixas e ressentimentos. As manchas de silêncio tornam a relação irrespirável.
É preciso falar, portanto. É preciso explicar, corrigir, alertar, reclamar, exigir. Soluçar, também. As conversas nos salvam de nós mesmos.
Morro de medo das pessoas que andam pelas ruas falando sozinhas. É como se as coisas não ditas tivessem tomado conta delas. Algumas gritam nos viadutos na direção dos carros. Outras falam baixinho, numa espécie de monólogo delicado. Todas as conversas, contam, argumentam – pateticamente – com alguém que não está mais lá, mas segue presente de alguma forma. A mente dos malucos está presa nos diálogos e decisões passados.
Por isso eu queria uma equipe de redatores a minha disposição, permanentemente.
Se eu me calasse, permitindo por raiva ou teimosia que coisas boas se estragassem, eles diriam: pare com isso, não seja criança, acerte as coisas, já! Se eu agisse com indiferença pelos sentimentos dos outros, eles também congelariam a cena. Diriam: “Olhe, veja como ela está precisando de atenção, abrace-a!”. Quando eu me omitisse por medo, quando eu me calasse por cautela, quando eu resolvesse gritar na hora errada, com a pessoa errada, com o amor da minha vida, me interromperiam: “Não faça isso! Não seja covarde! Não despeje nos outros as suas frustrações!”.
Na falta dessa equipe de apoio, vou me virando sozinho. Falo com a analista, converso com os amigos, divago em voz alta com Carlota e Elizabeth, minhas gatas. Sempre depois dos fatos ocorridos, infelizmente, sempre olhando o retrovisor. Esta parece ser outra realidade inevitável: lidar apenas com o que já passou. A gente vive, erra, pensa e (quem sabe?) aprende a não se afogar novamente nas palavras: as ditas e as não ditas.
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