À margem da própria margem: homossexualidade masculina na velhice
Depois de Tudo (2008), filme de Rafael Saar |
Por Marlon Dias *
Em 2008, Rafael Saar apostou na simplicidade para compor um roteiro cinematográfico que pudesse ser produzido em poucas semanas. Estava no último ano do curso de Cinema da Universidade Federal Fluminense quando pensou em roteirizar a história de personagens identificados pelo ineditismo na representação dramatúrgica até aquele momento: os homossexuais com mais de 60 anos.
A ideia deu origem ao delicado “Depois de Tudo” (2008), curta-metragem vencedor de alguns prêmios, dentre eles Melhor Filme Estrangeiro no UNCIPAR – Jornadas Argentinas de Cine y Video Independiente e Melhor Roteiro do Festival de Cinema da Diversidade Sexual de Fortaleza. O filme fala sobre a cumplicidade entre dois amantes, interpretados por Nildo Parente e Ney Matogrosso, que se encontram às escondidas no apartamento de um dos personagens.
O jovem diretor aposta em um roteiro contemporâneo que utiliza o recorte e não o todo. O cotidiano ganha força nas cenas em que os diálogos são escassos e despretensiosos. O casal janta, assiste ao filme “Quando voam as cegonhas”, transa e, no outro dia, despede-se. É uma narrativa sobre o encontro e a espera. Ao final, irrompe a voz de Gal Costa na mais perfeita interpretação de Lágrimas Negras. “E você, baby, vem, vai, vem”, repete a cantora, e é como se o verso resumisse a história de dois homens que ainda precisam, depois de tudo, viver em segredo o seu amor.
Ao falar sobre uma relação afetiva madura com grande desprendimento, o filme de apenas 12 minutos consegue nos trazer importantes reflexões. A mais inquietante delas é “como vivem esses homossexuais que hoje estão com 60 anos ou mais?”. O filme causa estranhamento, justamente, por nos fazer questionar algo que muitos de nós jamais pensamos. Através da sutileza de sua narrativa, Saar apresenta o cotidiano de um casal de homens velhos que estão situados na invisibilidade.
O envelhecimento dos homossexuais é um tema que, aos poucos, vem ocupando um significativo espaço em estudos acadêmicos, com pesquisadores interessados em conhecer as diferentes esferas que se relacionam com a temática, desde questões referentes ao corpo e ao sexo até discussões sobre as políticas públicas destinadas a essas pessoas.
O sociólogo Murilo Peixoto da Mota, em artigo intitulado “Homossexualidade e Envelhecimento: Algumas reflexões do campo da experiência”, questiona algo bastante pertinente à nossa discussão e que tentamos refletir ao longo deste texto: afinal, “qual o lugar social dos velhos com práticas homossexuais nessa sociedade marcada pela ótica da vida jovem, pelo valor do individualismo, pelas políticas sociais mediadas pelo heterossexismo e pelo padrão de família que desvaloriza e renega a homossexualidade?”.
O duplo estigma
Os homossexuais que estão hoje com 60 anos viveram sua juventude e vida adulta em uma época de pouca tolerância, tempos mais perigosos e complicados quanto à garantia de sua liberdade e aos direitos humanos. Acostumados a omitir sua sexualidade, considerada desviante, esses homens “sujeitaram-se” à invisibilidade. Suas demonstrações afetivo-sexuais, tidas como pecaminosas e/ou imorais, deveriam ser mantidas em sigilo, caso contrário, corriam o risco de serem excluídos dos círculos de amizade e sofreriam o escárnio da sociedade.
Permanecer “dentro do armário” foi a única opção de muitos desses homens durante longos anos. Alguns deles, para seguir a ordem heteronormativa da sociedade, casaram-se, tiveram filhos, tornaram-se “pais de família”, mas mantiveram os encontros com outros homens em locais obscuros onde o que prevalece é o sigilo. O personagem de Ney Matogrosso, em “Depois de Tudo”, exemplifica isso, com a história de um homem que dá indícios de que é casado com uma mulher e, por isso, pede discrição quanto ao relacionamento extraconjugal e paciência ao companheiro para entender a escassez do tempo juntos e a intermitência dos encontros.
Na contramão, temos o personagem de Nildo, que simboliza a vida de um homem solitário, sujeito às idas e vindas de seu amante. Essa solidão é uma característica de muitos homens que vivem sob o véu da invisibilidade na velhice. No caso dos homossexuais que não têm um companheiro, nem sua rede de relações de “antigamente”, tampouco família (seja por já estarem mortos, seja pela perda de contato em decorrência da não aceitação dos familiares), a terceira idade torna-se uma fase marcada por tristeza e reclusão.
Para o pesquisador Guilherme Passamani, professor do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, o que pode conferir certa invisibilidade para a homossexualidade na velhice é “a própria dificuldade destes sujeitos com a sua homossexualidade, uma vez que eles são de épocas onde preconceitos e discriminações a esta orientação sexual eram muito mais contundentes”.
Esses homens são duplamente estigmatizados, por serem velhos e por terem uma “sexualidade em desvio”. Quando chegam à terceira idade, passam a ser ignorados ou rechaçados até mesmo dentro do próprio grupo de homossexuais, e não raro são apelidados com nomes pejorativos como “tia velha” ou “velho tarado”. Desse modo, configuram-se como sujeitos que se encontram à margem da própria margem.
Quando se pensa na relação margem-centro, é importante perceber um e outro sempre em movimento. Há diversos pontos de referência que interferem em nossa percepção e o que pode ser o centro para um é visto como margem para outro, e vice-versa. Importante fazer esse adendo quando se fala em homossexualidade na velhice. A homossexualidade ainda é, em nossa sociedade machista e heterossexista, “malvista” por um número considerável de pessoas. No entanto, depois de anos de luta do movimento LGBT, é inegável que as causas ganharam visibilidade e que, aos poucos, os direitos civis são concedidos a esses indivíduos. Todavia, ao se falar na figura do homossexual, temos comumente uma imagem juvenil, sendo pouco vista a sua representação como um idoso.
Mas o grupo dos homossexuais velhos não é o único segregado, há outros tantos. “Temos os afeminados, os negros, os pobres, os gordos. Todas estas categorias de homossexuais acabam fechando-se em alguns guetos. Sobressai apenas o gay masculinizado, branco, de classe média, algumas vezes, intelectualizado e jovem. Ou seja, aquele sujeito que pode, facilmente, ser confundido com um garoto heterossexual”, afirma Passamani, que se deparou com essa realidade enquanto realizava a pesquisa para o seu segundo livro, “Na Batida da Concha: Sociabilidades juvenis e homossexualidades reservadas no interior do Rio Grande do Sul” (Editora da UFSM, 2011). Para o pesquisador, é provável que seja um mecanismo de defesa da homofobia generalizada que existe na sociedade.
O perigo dessa segregação está na construção de um grande grupo marginalizado no interior da própria homossexualidade, com formas tão agressivas de marginalização quanto as que se têm na sociedade mais ampla. “Seria o mesmo que uma família de negros discriminar a filha negra porque nasceu com a pele um pouco mais clara, ou um pouco mais escura. Além disso, é desconsiderar, por exemplo, que o envelhecimento do corpo é um processo que atinge a todos”, conclui Passamani.
Os corpos envelhecentes
Obviamente, nem todos os gays rechaçam o idoso. Passamani atenta para a possibilidade das relações intergeracionais que envolvem as trocas eróticas entre o homem novo e o velho. O pesquisador acredita que é impossível fecharmos os olhos para o fato de que “nem todo o idoso está acabado, esperando a morte em casa. Ele está no mercado das trocas eróticas, talvez não como nós vemos os mais jovens, mas este espaço começa a ser visível. As salas de bate-papo são um bom exemplo disso, além de saunas e clubes de sexo”.
O escritor, dramaturgo e roteirista
Ricardo Rocha Aguieiras |
Há dez anos, o paulistano Ricardo Rocha Aguieiras, defensor da ideia de que a pessoa tem sua libido até o último suspiro de vida, vai à Parada do Orgulho Gay de São Paulo sustentando um cartaz com os dizeres “Gays idosos também são (muito) gostosos!”. Cansado dos protestos que traziam apenas palavras de ordem e sem uma ‘pitada’ de humor, Aguieiras resolveu carregar uma bandeira que parecia rejeitada pelo resto das pessoas, inclusive pelos homossexuais. O ineditismo da atitude chamou a atenção não apenas do público, mas também da imprensa tradicional, e ajudou a trazer para a pauta uma discussão ainda frágil e que muitos se recusavam a pensar: a velhice homossexual.
Aguieiras é escritor, dramaturgo, roteirista e militante do movimento LGBT. Integrou o Somos – Grupo de Libertação Homossexual, considerado o primeiro grupo gay brasileiro, formado em maio de 1978, na cidade de São Paulo. Nos últimos anos, tem se dedicado à luta em favor dos direitos e de políticas públicas que atendam aos homossexuais velhos.
Para o escritor, é paradoxal a existência de uma glorificação da juventude em uma sociedade com um número cada vez maior de idosos. O pensamento de que o idoso, independente do exercício de sua sexualidade, é um ser inativo, que não serve mais para a sociedade regida pelo capitalismo, precisa ser revisto e urgentemente reformulado. “As pessoas têm que ser compreendidas em suas poéticas existenciais e pelo conhecimento que carregam, não pela produção que gera lucro, dinheiro”, afirma Aguieiras.
O escritor luta por uma causa que também é sua: aos 66 anos de idade, homossexual assumido desde sua juventude, sofria com a discriminação dos que achavam anormal ser gay. Hoje, ele afirma que o preconceito continua, mas o fato de ser velho potencializa os ataques. Aguieiras conta: “Quantas e quantas vezes eu vi ou soube de gays idosos ou que não tinham o corpo dentro da ditadura da estética exigida e imposta ou usando roupas que não eram de grife ou da moda sendo retirados da fila de boates e impedidos de entrar? Ou, quando conseguiram entrar, foram motivos de chacotas pelos mais jovens, malhados, sem camisa? O próprio termo ‘sarado’ é profundamente preconceituoso, já que um corpo não malhado seria então ‘doente’. Quantas vezes vi promotores de boates em redutos gays como na Avenida Vieira de Carvalho, em Sampa, dando flyers de suas promoções e eventos só aos jovens que transitavam e não dando aos mais velhos? Eu namoro um rapaz de 19 anos e sei que sou visto como aberração ou ‘corruptor de menores’. Segregação gera solidão e solidão machuca, enlouquece, mata. Quero lutar por um mundo de amor e de inclusão, mesmo sendo utópico, é o que me impulsiona”.
Aguieiras não está errado e esse fenômeno de rejeição a gays velhos é recorrente em outros países. Segundo uma pesquisa realizada em 2012, pela ONG inglesa Stonewall, o preconceito e a falta de direitos civis acentuam as consequências do envelhecimento para os homossexuais. O estudo foi feito com gays, lésbicas, bissexuais e heterossexuais maiores de 55 anos no Reino Unido e revelou que 34% dos homens gays e bissexuais foram diagnosticados com depressão e 29% deles com ansiedade, o dobro em relação aos heterossexuais da mesma faixa etária. O estudo ainda apontou que o consumo de drogas, álcool e cigarro entre os homossexuais idosos é maior que entre os heterossexuais.
A pesquisa realizada pela ONG Stonewall também aborda a discriminação que os homossexuais idosos sofrem em postos de atendimento médico e em casas de recuperação ou asilos. Segundo os resultados apontados, a maioria dos profissionais que atendem esses idosos não tem treinamento necessário para lidar com a diversidade. Há relatos de homossexuais que, após contarem aos seus companheiros de casa sobre sua sexualidade, tiveram de ser colocados em outras alas do asilo, pois começaram a sofrer com o desprezo dos demais. Para evitar essa situação, há outros tantos que resolvem silenciar sua condição.
Esse silenciamento também influencia na ausência desses indivíduos em grupos de militância LGBT. No ano de 2010, a Associação da Parada de São Paulo ofereceu a Ricardo Aguieiras um trio elétrico para que pudesse reunir homossexuais idosos em prol de sua causa. Aguieiras conta que teve a maior dificuldade para levar os 30 convidados a que tinha direito. Só conseguiu amigos gays jovens, com uma ou outra exceção. “Gays idosos ainda não abraçaram a militância como deveriam. É uma luta bem árdua”, afirma ele.
Sandro Ka, coordenador geral do grupo Somos de Porto Alegre (RS), acredita que a pouca presença de LGBT’s idosos é um reflexo cultural, em resposta aos preconceitos sociais relacionados às sexualidades diferentes da heterossexualidade. Sandro afirma que há uma parcela muita pequena de homossexuais idosos que procuram o grupo. Eles estão divididos entre aqueles que buscam informações jurídicas ou têm indagações sobre as práticas sexuais. Neste último caso, homens que estão (re)descobrindo sua sexualidade ou saindo do armário agora.
O que se guarda na memória dos invisíveis?
Desde os mais antigos tempos, os mais velhos eram os incumbidos da função de contar as histórias para que, assim, as tradições e legados de seu povo pudessem perdurar. O velho era, então, o detentor das memórias do grupo. Ao longo dos séculos, o homem contou sua história com o intuito de algo de si continuar vivo. É assim até os dias de hoje.
Para Passamani, a utilização da memória é importante, pois “é por meio dela que se pode ter acesso a vivências em tempos que não são os nossos e acompanhar a construção de cenários e perspectivas que desenharam os caminhos que a homossexualidade, por exemplo, percorreu”. O problema está quando não se tem registros da memória do grupo, não por sua inexistência, mas sim porque as lembranças não são verbalizadas. Do que se constituirá a memória de um sujeito que teve sua sexualidade reprimida e viveu sua juventude e vida adulta tendo que mascarar seus desejos e demonstrações afetivo-sexuais?
Resta torcer pelo surgimento de iniciativas de jornalistas, escritores, cineastas, pesquisadores e quem mais se atrever a reportar a história desses homens que ocuparam o lugar da invisibilidade, da marginalidade e do esquecimento social durante uma vida inteira. Um bom exemplo de resgate da memória do grupo de homossexuais é o documentário “Bailão” (2009), com direção de Marcelo Caetano. As lembranças de uma geração são reavivadas através do depoimento de cinco homens que têm como ponto de convergência para suas histórias um Bailão em São Paulo, frequentado, principalmente, por homossexuais idosos.
Cada depoimento ajuda a recompor o grande mosaico de histórias de vida de pessoas que carregam duplamente o peso da oposição ao projeto social da heteronormatividade jovial. São memórias de gays velhos que parecem ter pouca importância frente ao projeto da modernidade que exclui qualquer indivíduo percebido como empecilho ao seu desenvolvimento. Talvez seja mesmo no silêncio e no anonimato que esses sujeitos encontraram, até agora, um abrigo seguro, onde pudessem proteger a si e as suas – nem sempre felizes – lembranças.
* Marlon Dias é jornalista e acadêmico de Letras
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