Relembrando a história do SOS Ação Mulher e Família
Jornal da Unicamp - Outubro de
2000
Páginas 12 e 13
VIOLÊNCIA
7 'Amélias e a mesma tragédia
Psicóloga desnuda em livro o universo
psiquicamente desestruturado de mulheres que convivem com a violência doméstica
; autora constata que "equilíbrio neurótico" conduz à perpetuação de
um "vínculo sadomasoquista"
Sete mulheres e um
terrível destino. Esse foi o ponto de partida para a psicóloga Lucélia Braghini,
doutoranda do curso de Saúde Mental da Faculdade de Ciências Médicas (FMC) da
Unicamp, na jornada que culminou num dos livros mais instigantes sobre
violência doméstica já produzidos no Brasil. E tão honesto que, à revelia da
histórica militância feminista da autora, acabou conferindo um relativo
certificado científico à pérola da "sabedoria popular" até então só
cultuada nos mais rudes botecos ou entre os fãs de carteirinha do cáustico
Nelson Rodrigues: "Mulher gosta de apanhar". Porém, se os chauvinistas
de plantão se sentirem tentados a buscar aí qualquer tipo de respaldo, podem
desistir de folhear Cenas
repetitivas de violência doméstica - um impasse entre Eros e Tanatos, lançado recentemente pela Editora da
Unicamp (Coleção Teses).
Lucélia teve
a coragem de se aprofundar nesse assunto tão polêmico – que, a grosso modo, até
poderia ser tratado como "complexo de Amélia" – exclusivamente pela
intenção de desvendar o mecanismo inconsciente que leva mulheres – não todas,
mas muitas – a se manterem em situações conjugais onde agressões físicas e de
outras ordens se verificam de forma crônica. Sem contar que, além do valor
acadêmico, a obra, referenciada na teoria psicanalítica, esboça propostas
terapêuticas para essas pessoas que, como ela classifica, "ainda não
conseguiram firmar um contrato com a vida".
O livro é o
resultado da prática de 12 anos de atendimento da psicóloga no SOS Ação -
Mulher e Família, entidade de combate à violência contra mulheres, e teve como
embrião sua dissertação de mestrado. Foi no SOS que Lucélia selecionou sete
clientes para um estudo qualitativo de casos e as submeteu a entrevistas
semidirigidas e a testes projetivos gráficos (ao grupo foi solicitado desenhos,
tanto de inspiração livre, como ligados aos temas "cena doméstica",
"a figura humana" e "duas pessoas"). Ao mesmo tempo em que
contribuíam para o trabalho, as mulheres passavam por terapia.
Devido a
formação de psicóloga de Lucélia, a pesquisa se distancia da abordagem
sócioantropológica, na qual o feminismo costuma se fundamentar com mais
freqüência. Mas ela não nega que a violência doméstica é produto de uma
"somatória de fatores", do econômico ao histórico e cultural (a
prevalência da sociedade patriarcal, para ser mais exato).
Nessa opção
pelo foco psicológico, a escritora situa sua fonte de inspiração: "No
contato freqüente com essa clientela, foi se insinuando na minha cabeça um
enigma. Apesar do caráter emergencial das queixas – pois muitas das mulheres
chegavam à entidade seriamente feridas pelos parceiros e até ameaçadas de morte
– por quê elas quase sempre acabavam voltando pra casa, mesmo sabendo que iam
apanhar de novo?" A resposta soa desconcertante: "Por mais incrível
que possa parecer e por mais que negassem no plano consciente, elas auferiam
gratificações, ainda que patológicas, das surras que levavam dos
companheiros". A explicação, segundo a autora, estaria no grau de
desestruturação psíquica das pacientes, elevado a ponto de perpetuar esse
"vínculo sadomasoquista".
"Daí,
foi natural a conclusão de que aquelas mulheres que vivenciavam relações de
violência com os companheiros raramente as rompiam, por estarem sujeitas ao
conformismo típico do que chamamos de equilíbrio neurótico", continua
Lucélia. "Em todos os processos" – frisa – "constatei algum
quadro de orfandade".
Condição
que, em pelo menos um dos casos analisados, se verificou ao pé-da-letra. A
paciente referida como Mirtes (os nomes são fictícios, para preservar as
mulheres) teve os pais falecidos quando ainda era bem criança e, no diagnóstico
de Lucélia, não teve "oportunidade de elaborar a perda". Foi com essa
fragilidade que, já aos 34 anos, procurou o SOS, encaminhada pela Delegacia de
Defesa da Mulher. No rosto, um enorme hematoma. Marca de uma mordida do marido,
relatou a vítima.
Empregada
doméstica, primeiro grau incompleto, sua primeira manifestação à equipe do SOS
está registrado no livro: "Eu quero me separar; sou casada há 14 anos,
tenho um menino de 14 anos e uma de 9. Eu e meu marido sempre vivemos mal, a
gente briga muito. Ele já me bateu demais. Acontece que ele não dá nada, tudo
que fazia era com a mão. Se masturbava e punha lá dentro, às vezes até me
machucava. Um dia eu me cansei disso e arrumei outro. Hoje, já não tenho mais
nada com essa pessoa. Mas ele ficou sabendo e não esquece disso".
Vítimas
de si mesmas – Dentre as sete
pacientes que tiveram as histórias exploradas no livro, Mirtes e outras duas
trazem as cargas mais marcantes de violência física. E esse subgrupo apresentou
uma característica comum, segundo a psicóloga: nenhuma vergonha de exibir os
ferimentos. "Ao contrário, os ostentavam, como uma forma de dizer ‘Olha,
eu sou a santa; ele, o vilão’. Uma rotulação simplista para duas pessoas
representando papéis num processo de amor patológico", afirma Lucélia. No
livro, ela chega a ser mais categórica: "A mulher não é vítima do
companheiro em si, mas dos próprios impulsos ativados pelas vivências
traumáticas de infância no sentido do aniquilamento do próprio eu."
No caso de
Ivete, mãe de um filho pequeno, a situação de orfandade detectada pela
pesquisadora não é tão literal, mas igualmente traumática. Ao pedir ajuda à
entidade, ela tinha 23 anos e se queixava da falta de apoio do pai nos
episódios de agressão que sofria do marido. Que, por sinal, é seu primo em
primeiro grau. O parentesco tão próximo chegou a inquietar a família, empecilho
do qual o homem – identificado como José Carlos – teria se livrado ameaçando de
morte o pai de Ivete. Casada com José Carlos há sete anos, Ivete garante que o
fez por imposição do rapaz, que a "perseguia pra namorar" desde a
infância. Para a psicóloga, o assédio sofrido desde os 9 anos, seguido do
casamento ainda na adolescência, estancou o desenvolvimento da personalidade de
Ivete.
Impressionante
é o nível de crueldade que ela atribui ao marido. Ivete diz que ele preferia
espancá-la quando estava amamentando. No teste do desenho de uma cena
doméstica, a paciente retratou uma mulher cumprindo três afazeres domésticos ao
mesmo tempo, utilizando para isso até os dedos dos pés. Na avaliação da
psicóloga, um reflexo da "relação senhor/escrava" em que estava
mergulhado o casamento.
Outra
história dramática é a de Rosa. Tinha 28 anos quando procurou o SOS, o rosto
coberto de cicatrizes. Acabara de sofrer uma tentativa de assassinato pelo
marido e se viu obrigada a pedir asilo na casa de uma amiga. "Eu sofri
tanto quando era solteira" – lembra Rosa, referindo-se à mãe alcoolista
que a espancava constantemente, ante à indiferença do pai – "Pedi a Deus
que pusesse no meu caminho uma pessoa para me tirar daquela vida, para me
sentir um dia feliz, mas foi tudo ao contrário".
Terem
sofrido espancamentos na infância ou visto a mãe sendo agredida são traços
comuns nas mulheres pesquisadas. "Elas acabam por introjetar o modelo
segundo o qual ser mulher é ter que sofrer calada", observa a escritora.
Mãe de três
meninas, Rosa é de origem nordestina, praticamente analfabeta e sobrevivia como
faxineira. Pelas características da clientela do SOS, a pesquisa alcança
exclusivamente mulheres de camadas sócioeconomicas e de nível cultural baixos.
"Mas a violência contra a mulher é atemporal e incidente em todas as
classes sociais" – ressalva Lucélia – "O que acontece é que nas
parcelas mais privilegiadas da sociedade há a tendência de se abafar os casos.
A não ser que explodam na mídia, como está sendo o exemplo do jornalista
Pimenta Neves, que matou a ex-namorada, Sandra Gomide".
Sina
de sofredoras – Quando,
popularmente, se fala em "sina", com referência a mulheres que vivem
se metendo em relações violentas, a abordagem não é totalmente desprovida de
cientificidade. A pesquisadora chegou à conclusão de que mulheres com histórico
de vida de opressão e agressões familiares tendem a procurar parceiros
violentos. "Energeticamente dá liga", define Lucélia.
A autora de Cenas repetitivas... destaca "dois sentimentos
fortes" que contribuem muito para manter mulheres prisioneiras de
relacionamentos brutais: medo e culpa. "Na queixa emergencial, é lógico
que elas exteriorizam o medo de morrer. Mas esse medo é mais insidioso, mais
visceral: é o medo de tocar a vida por conta própria. É aquela história do
‘ruim com ele, pior sem ele’. Acham que não conseguiriam sustentar sozinhas os
filhos – o que, na realidade, muitas já fazem, sem ao menos ter consciência
plena disso. Medo também da desaprovação familiar", enumera a psicóloga.
Sobre a
culpa, Lucélia lembra as origens milenares do sentimento, que tem o melhor
exemplo na clássica "sedução" de Adão por Eva. "Atravessada por
conflitos dessa ordem, a mulher acaba acreditando que apanhar ajuda a expiar a
culpa", teoriza a autora.
A
dependência psicológica é outra barreira. "Inconscientemente a mulher não
quer sair da situação; ela tem o parceiro como seu verdugo, mas ao mesmo tempo,
seu protetor, Ser vítima acaba sendo meio de vida" – explica a pesquisadora
– "Romper é difícil também porque implica em reviver vínculos
passados". Segundo ela, muitos dos casos esbarram na chamada reação
terapêutica negativa, mecanismo pelo qual o paciente não deixa o tratamento
surtir efeito.
A medição do
impacto psicológico no drama da mulher vítima de maus tratos serviu para tornar
o SOS mais criterioso ao apreciar a solicitação de assessoria judicial para
separação, que quase sempre é a primeira a despontar. "A mulher procura a
instituição como depositária de suas queixas. Mas depois, volta pra casa e
acaba se reacomodando no ciclo da violência. Por isso, é importante oferecer
outros atendimentos. O advogado entra mais na frente do processo, pois mudar a
vida implica em tomar consciência", defende Lucélia.
Cavalos
desencontrados – Eros e Tanatos, os
deuses da mitologia grega que Freud elegeu para personificar as pulsões da vida
e da morte, figuram no subtítulo e permeiam o livro de Lucélia. Seriam
elementos que "se opõem internamente como personagens ativos no psiquismo
de homens e mulheres, e, ao serem projetados na figura do companheiro,
encontram as condições ideais para se digladiarem". No entanto, ela
acredita que "é possível trabalhar terapeuticamente com estas forças,
‘domá-las’ e utilizá-las de forma inteligente e sensata em favor da saúde e do
bem estar de seus possuidores."
A autora
chega a render-se ao romantismo ao comparar esses princípios antagônicos a
"cavalos selvagens, um preto, relegado aos domínios sombrios e obscuros da
personalidade, e um branco, representante da mente consciente e lúcida, a face
com que esta se apresenta ao mundo. Quanto mais distantes um do outro, maior a
alienação e os riscos à desestruturação psíquica. Tornando-se conhecidos,
poderiam deixar de ver-se como inimigos, mas se perceberem como partes
distintas de um todo maior, podendo se complementarem harmoniosamente num
enlace das forças elementais da natureza".
A extensa
bibliografia de Cenas
repetitivas... é
recheada de sisudos tratados, mas não deixa de abrir espaço para abordagens
mais livres, como As brumas de
Avalon, best-seller pelo qual Bradley se aventurou numa prospecção do
cotidiano das mulheres que teriam vivido à sombra da mítica Távola Redonda do
Rei Arthur. Já na epígrafe de seu livro, Lucélia explica o porquê da inclusão:
"Mesmo tendo que se adequar aos padrões de cientificidade, este estudo não
deixou de ser escrito pela pena da emoção e pela ótica da mulher".
Status
barra pesada – Campinas é um
centro urbano fértil para estudos de casos de agressões a mulheres. Esse
status, nada animador, foi confirmado já em 1996, durante visita de uma
relatora especial da ONU para Assuntos de Violência Doméstica, que situou
Campinas entre as cidades com mais casos dentre as que constaram do relatório
relativo ao Brasil.
Quem lembra
o fato é a antropóloga Maria José de Mattos Taube, coordenadora do SOS Ação Mulher
e Família, que fez a apresentação do livro de Lucélia. O SOS de Campinas, que
completará 20 anos de atuação no mês que vem, mantém uma média anual de mil
atendimentos a mulheres espancadas pelos parceiros (20% das queixas registradas
na Delegacia da Mulher, por ano). "É difícil utilizar essa estatística em
termos comparativos rígidos, pois se de um lado, ela reflete a existência de
uma entidade atuante, há o eterno problema da subnotificação de casos, sem
contar que Campinas possui uma demanda reprimida, até pelo fato de não contar
com mais de um SOS", justifica Maria José.
Apesar das
dificuldades, a coordenadora destaca a importância do apoio que o SOS recebe da
Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários da Unicamp. "Desde 1987,
quando foi firmado o convênio, tivemos avanços notáveis. Um dos principais é o
viés de estudo e pesquisa, que fez do SOS quase um hospital-escola",
elogia. É nesse contexto que, de acordo com ela, obras como a de Lucélia ganham
o potencial de "impulsionar a implantação de políticas públicas".
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