26/05/2015
Por Douglas Belchior
O dia 25 de maio é celebrado como “Dia da Libertação Africana”. A data marca a fundação da Organização da Unidade Africana, em 1963 em Addis Abeba, na Etiópia. Participaram daquele momento histórico 32 Estados Africanos. Àquela altura, dois terços do continente havia alcançado a independência do domínio colonial. Nesta reunião a data de Dia da Liberdade da África foi alterada de 15 abril para 25 maio e renomeado para Dia da Libertação Africana. Desde então 25 de maio tornou-se a referência simbólica e pragmática dos objetivos estratégicos e políticos do movimento Pan-africano.
Apesar da conquista da independência formal, muitos países africanos não romperam totalmente suas relações com as ex-metrópoles e essa continuidade de opressão originou o surgimento do neocolonialismo, que se trata de um modelo de continuidade da dominação estrangeira na política e na economia das nações africanas. Ainda hoje as forças do capital e do racismo subjulgam a maior parte do território e da população do continente africano, em que pese a permanente luta desse povo.
Para nós, afro-brasileiros e africanos da diáspora em todo o planeta, a data é importante para resgatar a importância deste continente, celebrar sua beleza, sua riqueza e principalmente exigir reparação histórica à todos os territórios e populações negras espoliadas pelo racismo e pela intolerância em todo o mundo.
Para comemorar essa importante data, registro abaixo o emocionante relato de uma educadora brasileira e seu encontro consigo mesma, em África.
Ubuntu!
Por Maria Silvia F. Alves de Oliveira
“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.” Nelson Mandela
Dia 25 de maio, dia da África. Sim, esse dia me emociona.
Me emociona pensar nos meus alunos negros, filhos de negros guerreiros, netos de negros que lutaram muito por sua sobrevivência. Sua ancestralidade, sua cultura rica. A alegria deles em cada aula. A luta diária deles para estarem ali. A importância do respeito à sua identidade, ao cultivo da sua cultura negra e periférica. Me emociona, ver sua felicidade quando na Aula sobre Cidadania por exemplo, cantamos juntos “Levanta e Anda”, do também negro brasileiro Emicida.
Me emociona neste dia 25/05 em lembrar da Cida, vizinha querida na cidade pequena onde nasci e cresci. Com ela aprendi uma outra História dos negros que não estava nos livros da escola estadual onde estudei na infância. Com ela aprendi a riqueza da congada (manifestação cultural e religiosa de influência africana mantida localmente pela comunidade negra da minha cidade de nascimento: Itapira/ SP), a solidariedade e a importância do ritual ao fazer uma feijoada por exemplo. Aquela mulher negra, forte, trabalhadora sempre se mostrava diferente daquelas fotos que os livros escolares traziam. Seu sorriso era sempre presente.
Em meados dos anos 80 uma reportagem sobre a África me fez ficar maravilhada, e pensava comigo: Um dia irei até lá. Irei encontrar outras Cidas! As revistas, os jornais insistiam em mostrar somente o lado triste do Continente. Mas, eu não desisti. Virou um sonho. Misturado ao sonho de fazer algo pelo social. Me intrigava tanta diferença social aqui em nosso país e lá na África também. Nas brincadeiras da infância, muitas crianças na escola queriam conhecer a Terra de Tio Sam. Eu queria ir para África. Nem me importava para a cara de estranheza deles. Em uma cidade do interior, esse não era um sonho comum. Talvez ainda não seja.
Me emociona este dia 25 de Maio, pensar no Jean. Um menino negro e alto que estudou a infância toda comigo. Todos os anos da escola, nas festas juninas, eu dançava com ele. Sim, nós éramos os mais altos da turma. E isso me fazia sentir mais aceita, já que sempre fui bem alta e isso até então era um problema pra mim. Até que um dia a mãe de Jean me diz: “filha, obrigada por dançar com meu filho todos esses anos. Só você dança com ele.” Virei pra ela e disse: – sim, tia. Nós somos muito altos! Ela séria pela primeira vez, ao se dirigir a mim: – “não filha, não é isso. Um dia você vai entender”. Jean, do meu lado nesse momento está cheio de lágrimas nos olhos.
Ela se referia ao Racismo. Passei então, saber que ele existe. Mas, ainda não entendo. Não aceito.
Me emociona este dia 25 de maio em pensar no meu sonho sendo realizado em 2012, em conhecer à Mãe África. Mas não quis ir até lá como turista. Queria estar mais próxima do povo, da comunidade. Somália fui aconselhada a não ir pela violência local na época. Angola e Moçambique entrariam em férias escolares na época. Escolhi então ir como voluntária em um projeto na África do Sul. Nos projetos, eu fui como Educomunicadora. O objetivo principal seria a Inclusão Digital.
É mágico pisar naquela terra, já quando chegamos no Aeroporto. Cheguei primeiro em Joanesburgo. Aquele povo lindo, sorridente, solícito, pronto em ajudar.
Foi lindo ver todas aquelas mulheres com seus lindos e coloridos turbantes. As crianças bem seguras nas capulanas (em alguns lugares da África do Sul, eles usam também esse nome. O belo tecido recebeu o nome de capulana em Moçambique).
De Joanesburgo pego outro voo até East London. Lá o simpático Thobela, que trabalha no projeto vai me buscar. Ainda faltam 50 minutos para o destino final: Chintsa East.
Chintsa East é uma vila litorânea, ao sul da África do Sul, na região de Wild Coast e pertence a província de Eastern Cape. Fica a 1 hora e meia de Qunu, pequena vila rural, onde Mandela nasceu e foi enterrado em dezembro passado.
O projeto de Inclusão Digital, então será feito em duas escolas comunitárias municipais rurais: a de Chintsa e Bulugha. Fui escalada para ficar nas duas escolas. O projeto seria para pré-escola, crianças e adolecentes. Em Chintsa também para os adultos.
No centro da vila, tem um café charmoso, um pequeno supermercado e um restaurante/ bar. Os chamados “orelhões” ainda são procurados pelas pessoas que moram e trabalham ali, para fazer suas chamadas telefônicas. Internet é muito cara. O sinal do celular é ruim.
No primeiro dia de aula, fui muito bem recebida por todos na escola. As crianças me olham com curiosidade e muito carinho.
Me apresentei e mostrei o Brasil no mapa, onde moro e mostrei a África e onde eles moram. Pedi para marcamos nossos nomes do Mapa no lugar de onde nascemos/vivemos, eles adoraram. Logo me perguntam sobre o Futebol. Eles sabiam os nomes de vários jogadores. Perguntei da comida, roupa, música. E percebi o quanto somos realmente parecidos em tudo.
Inclusive nas rotinas da escola. Tudo muito parecido.
As salas são muito simples, mas bem cuidadas. Na sala de informática eles só tem 12 computadores, 2 quebraram. Dividíamos 2 alunos nas máquinas. Eles não tinham internet. Ainda fazem pesquisas nos livros. As aulas eram mais direcionadas para produção de textos e utilização de imagens. Me emocionava, o quanto eles queriam participar da aula. Levantavam a mão o tempo todo com vontade.
Muitas vezes, em frente ao computador cantavam juntos, fazendo a primeira e segunda voz naturalmente. Eu me sentia em uma aula de canto muitas vezes.
Logo abaixo no banco de madeira onde as crianças estavam, tinham alimentos estocados. Sacos de arroz, batata e cebola. Aquela imagem do alimento e dos computadores ali juntos me remetia a ideia de duas necessidades sendo atendidas com igual importância. Quando a Phumla (uma das professoras, linda e simpática mulher, da pré escola, moradora da Comunidade) chegava para pegar os alimentos para ajudar a fazer a merenda, de forma organizada eles paravam as atividades e todos ajudavam. Percebi essa ajuda, o tempo todo. Os professores são muito unidos também. Duas que vivem longe dali, durante a semana dormem na escola, e só voltam para a suas famílias nos finais de semana.
Levei de presente para as pessoas do projeto e da escola alguns cosméticos feitos com matéria prima da Amazônica (adoraram os aromas e óleos) e alguns CDs de músicas que eu gosto, prevalecendo o samba. Mostrei aos professores e alunos.
Nunca me esqueço, no dia em que cheguei para dar aula e bem na entrada da escola, uma porteira, e ali avistei uma porca em trabalho de parto. As 200 crianças que ali estudam, entravam para a escola em silêncio e de uma forma muito organizada, sem que nós professores tivéssemos que pedir. Entraram para suas respectivas classes (divididos em séries como no Brasil), e ficaram ali quietos numa espécie de oração. Eu respeitei aquele momento deles, quando um aluno de 8 anos sorridente pede para falar no meu ouvido: – “estamos pedindo para que tudo saia bem para o nascimento dos porquinhos”. Eu ficava mais impressionada com aquela beleza de sentimentos. Fiquei pensando se isso acontecesse aqui. Como iríamos nos comportar? Uma das professoras me pede licença para entrar na sala de informática e diz para os alunos que tinha dado tudo certo com os porquinhos e que estava tudo bem. Foi então que os alunos vibraram como se fosse final do Campeonato de Futebol e o Orlando Pirates fosse campeão (time que a maioria dos alunos da comunidade).
Frequentemente as crianças vinham ao nosso encontro, mesmo fora do horário escolar, sempre alegres contando aos familiares: – “olha minha professora aqui. Olha a Maria. Ela é do Brasil.”
Nunca vou esquecer os olhares daquelas lindas mulheres, mães e avós: – “muito obrigada por vir até aqui, educar nossos filhos e netos. Ensinar essas coisas importantes de saber. Você atravessou o oceano para fazer isso”. Diariamente faziam isso. Um olhar de tanta gratidão. De tanta importância ao outro.
Entendi o que quer dizer “Comunidade” em todos os sentidos. Na preocupação de uns com os outros que moram ali, na divisão de alimentos, na importância de rituais, na solidariedade. Nos finais de semana, ficava com eles nos almoços comunitários. Todos se ajudam, trabalham, cantam e dançam o tempo todo. Muito felizes. Os homens estão sempre junto à elas, mas a presença feminina e a figura da avó é muito respeitada.
Vi muitas vezes, as crianças rodeando as senhoras mais velhas da vila e por horas elas contavam histórias à todos. Sem piscar os olhos, ficávamos ali aprendendo com aquelas mulheres guerreiras. Impressionante como trabalham desde pequenas. Trabalham demais. Plantam, colhem, cozinham, costuram, cuidam das crianças e dos animais.
Conheci a Mama Tofu, a matriarca da Vila, de 92 anos de idade, lúcida e feliz com seu cachimbo contava também tudo o que passou na vida, as pessoas queridas que perdeu durante o Apartheid*. Sua admiração pela luta de Mandela (dizia várias vezes: Madiba! Madiba! Viva Madiba! Nesse momentos, seus filhos, netos e bisnetos e os outros moradores a aplaudem). Nunca me esqueço de seus conselhos: – “Nunca beba muito. Não fume muito. E aceite as coisas que a vida manda pra você”. Tudo muito Sagrado. Tudo vivenciado por todos sem pressa.
Nunca me esqueço da família de um aluno, o querido Etako, que me convidou um dia para entrar na casa deles. Eles são em 6 pessoas. Um lugar tão pequeno que nos dias de calor fica muito quente e nos dias frios eles dizem que passam muito frio. Eles me dão o melhor lugar para me sentar no sofá que já está velho e quebrado, com pedaços de tijolo sendo o suporte, e me oferecem uma xícara de chá quente (com ervas medicinais plantadas pela avó de Etako). Percebi que a xícara era a melhor que eles tinham na casa. Os cinco familiares de Etako e mais ele me olham sorrindo o tempo todo. Dois deles só falam em Xhosa (uma das 11 línguas oficiais da África do Sul) os outros se comunicam em Inglês comigo. O pequeno Etako traduz para o Xhosa a nossa conversa para os dois que não falam inglês, e faz isso imediatamente, para que eles não se sintam excluídos daquele momento. A mãe de Etako me diz “now you are sissi”, ou “agora você é nossa irmã”. Me emociono a todo momento. Ao me despedir daquele inesquecível encontro, a avó me diz. “Maria, UBUNTU”. E faz questão de me explicar, segurando nas minhas mãos: “Maria, UBUNTU é assim: Eu sou quem sou, porque somos todos nós! E atenção: porque SOMOS, não pelo que temos…”.
Ubuntu é assim: Eu sou quem sou, porque somos todos nós! E atenção: porque SOMOS, não pelo que temos…
Voltei para a casa onde fiquei pensando em tudo isso. Pensei como perdemos essa importância às relações interpessoais. Como não valorizamos mais os rituais ou a importância de uma refeição com a família. Pouco reparamos que muitas vezes sequer sabemos o nome dos vizinhos.
Nunca vou me esquecer de uma das moradoras da comunidade, que em um domingo frio (era junho, clima muito parecido com o nosso: manhãs e noites frias, sol de dia), conversa comigo como se fossemos amigas de infância. Contei para ela como sou apaixonada por fotografia e como gostaria de fotografá-la. Ela muito emocionada me diz: – “não tenho nenhum retrato meu.” Pois agora terá. Pedi para imprimir e comprei um porta-retrato (fiz isso em um final de semana em East London, já que em Chintsa não era possível). Fui entregar na casa dela. A emoção da família e a dela foi enorme. Ela dava pulos de alegria. O presente foi meu.
Por essas e por outras, sou grata a tanto aprendizado. Por tantas histórias. Pelo amor que imperou o tempo todo. Pelos encontros sagrados.
25 de maio – O dia da África sim, me emociona.
A luta do povo africano por sua independência e libertação é comemorada nesse dia. A data é celebrada pelos negros do Brasil e do mundo pelos progressos, as dificuldades e as obras realizadas no continente. O dia da África é a manifestação de milhões de africanos com o objetivo de organizar os desafios da construção do futuro de uma África solidária, democrática e real. Esse é o mundo que queremos.
Maria Silvia F. Alves de Oliveira – Educadora Social. Colaboradora na AfroeducAÇÃO. Atuante no Terceiro Setor há mais de 1 década. Estudante na Especialização em Educomunicação na ECA – USP. Fã de Nelson Mandela. Atualmente sonha em Campinas/SP Twitter: @mariasilviabr – Mais sobre o projeto: endereço no YouTube: http://www.youtube.com/watch?v=USTsee9-FFc&feature=youtu.be
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