09/04/2014
Pedro Ribeiro Nogueira
Pedro Ribeiro Nogueira
Germán Doin era um bom aluno de um colégio de classe média em Buenos Aires. Auto-declarado “vítima da educação neoliberal da década de 90”, viu seu país entrar em ebulição com os panelaços e com as frequentes crises econômicas. Aos 16, ouviu falar de uma escola sem provas. Com a sensibilidade formada nesse caldo, resolveu estudar cinema e educação. Aliando todos esses elementos, resolveu, aos 21 anos, partir em viagem pela América Latina. Levou três anos para se completar.
“Talvez esse momento dos panelaços não estivesse tão carregado desse sentimento de transformação. Mas nós terminamos de completá-lo. Era o que dava sentido à minha vida. Minha família me deu uma formação transcendental, espiritual. Meus pais passaram pela ditadura. Meu avô teve uma formação mais militante. Mas, no geral, sou filho de uma classe média que não se questionava demais, uma geração que consome muitos livros de autoajuda, como se procurasse algo de jogo, de autoconhecimento, que lhes roubaram em algum momento de suas vidas. A ditadura, a escola, lhes deixaram incompletos. Queremos uma educação que forme sujeitos integrais, empenhados em transformações.”
O resultado dessa empreitada é um filme que você talvez já tenha visto. Caso contrário, não hesite em ver. “A Educação Proibida” (disponível na íntegra com legendas em português aqui) é um longa com pouco mais de duas horas de duração, que destrincha de forma didática os mecanismos que constituíram o que hoje entendemos por educação e escola, partindo de experiências exitosas e depoimentos de especialistas. Além disso, consegue fazer com que o espectador analise o seu próprio processo educativo. Uma obra compartilhada já por mais de dez milhões de pessoas.
Coerência com o processo
Em sua viagem, Germán conheceu mais de cem experiências e propostas educativas alternativas que, ao admitir a possibilidade da dúvida, começam a traçar caminhos para um mundo diferente. Após a pesquisa, passou a agregar contribuições de amigos e estabelecer parcerias. Trouxe sua companheira e colegas para a equipe do filme. Abriu o projeto para financiamento colaborativo em uma plataforma própria, pois ainda não existiam sites para isso. Em pouco tempo, “A Educação Proibida” tornou-se o primeiro filme feito na América do Sul por meio do crowdfunding.
“Queríamos ser coerentes com o que contamos no filme. Uma das chaves escondidas da educação é algo que decidimos fazer, ou seja, soltar o volante, não controlar a criança, o currículo, o processo educativo. Tentamos fazer isso com o filme, jogando ele no mundo, o que é um processo difícil, pois há mostras de cinema e isso parece importante. Mas, desse jeito, conseguimos fazer as projeções nas salas de casa, de cinema alternativo, escolas, teatros, e estreamos em 150 salas do mundo, sete países. É algo impressionante que essa obra tome asas e ganhe o mundo, gerando reflexão. E ele foi feito quase artesanalmente, em uma garagem.”
Dois “filhos” e uma filha
Sem ter ganhado nenhum prêmio, apenas o mundo, Germán vê seu filme como uma emanação das experiências militantes argentinas da década de 60, pensado para ganhar espaços de formação política, de organização e luta. No entanto, há uma diferença fundamental: a internet. Através dela, o cineasta conseguiu dar sequência ao projeto e criou a rede Reevo (Rede de Educação Viva), na qual voluntários de todo o mundo acrescentam iniciativas de educação inovadoras, se conhecem, trocam informações, além de ampliar a rede. que já conta com mais de 1.500 experiências. “A tecnologia é política”, lembra Doin. “Ela pode reproduzir o mesmo currículo oculto da educação tradicional. Temos que encontrar formas de usá-la para o que é humano”.
Aos trinta dias da estreia da película nasceu Ami, primeira filha de Germán, um acontecimento para provar de vez a indissociabilidade entre o que propõe em seu filme e sua vida pessoal. Ele relata que o nascimento da primogênita o fez ir à terra, ter raízes claras e decidir não escalar a montanha de exposição do vídeo. Recusou convites para aparecer na televisão, “pois ela te consome”, e resolveu seguir “sempre dançando conforme a música”.
“Ser educador ou pai são as únicas profissões que não demoram quatro anos para aprender na faculdade: aprendemos desde cedo a educar uns aos outros. E isso leva tempo. Vi que não temos respostas ou verdade, mas o importante é saber mudar de ideia. O que faz sentido hoje pode não fazer amanhã. Não importa se a educação dela vai ser alternativa, ou em comunidade de aprendizagem, ou em casa. O crucial é que ela tenha uma vida rica, cheia de afeto, cuidado e vínculos. Que conheça os pais pelo que são.”
Mas, afinal, o que é a educação proibida?
Para o cineasta, educador, pai e ativista, ela é algo que atende ao que há de intrinsecamente humano, natural e abre possibilidades. Se afasta da escola-prisão, do tédio, da caricatura, do depósito de gente, do adestramento. Se inspira no modelo ateniense – do debate aberto – antes do espartano. Ensina o que está no território e não no mapa. Uma educação que sempre foi proibida de se desenvolver.
Nas centenas de escolas visitadas, Germán encontrou um elemento comum de uma educação latino-americana: o valor humano, da terra e da relação entre si e com o mundo. Conhecer a nós mesmos, nesse caso, passaria por conhecer o que nos rodeia, o que nos nutre: nossas culturas, raízes, um autoconhecimento no sentido freiriano, de trabalhar a partir do que trazemos e não com o que nos impõem.
Para isso, ele acredita que há espaço para autonomia nas atuais leis de educação dos países de nosso continente. Seria necessário, então, reinterpretá-las e aprofundá-las em direção a uma educação integral, democrática, comunitária, trabalhando da base, com formação de professores, até à formulação de políticas públicas. Buscar algo que seja “nosso” e ser protagonista desse processo.
“A educação latinoamericana tem que ser antes que tudo pensada por e para os latino- americanos, reconhecendo nossa difícil unidade. Mais do que isso não se pode dizer, pois implica reproduzir as relações de opressão e colonialismo que sempre nos interromperam. Nosso projeto foi interrompido, truncado por ditaduras, metrópoles e regimes. Temos que refazê-lo, para que não o refaçam por nós.”
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