Publicado na edição 68, de maio de 2015
Pesquisa brasileira constata, após 30 anos, benefícios do leite materno em adultos de diferentes classes sociais, históricos familiares e origens étnicas
Pesquisa brasileira constata, após 30 anos, benefícios do leite materno em adultos de diferentes classes sociais, históricos familiares e origens étnicas
//Por Cinthia Rodrigues
Em 1982, quando pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) cadastraram todos os 5.914 bebês nascidos na cidade gaúcha que sedia a instituição, a visão que se tinha da amamentação era muito diferente da atual. Enquanto aquelas crianças cresciam, foram consolidados os benefícios da prática para a mãe e o filho. Em 1991, por exemplo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a recomendar o leite materno como alimento exclusivo até os 6 meses de idade. Agora adultos de 30 anos, os dados daquele grupo dão fortes indícios de outras vantagens em mamar no peito.
Os recém-nascidos de 1982 foram visitados pelos pesquisadores quando tinham cerca de 1 ano e meio de idade, para que as mães comentassem até quantos meses amamentaram o bebê. Os dados foram armazenados com outros coletados ao longo da infância e adolescência. Em 2012, 3.493 dessas pessoas fizeram testes de QI e declararam escolaridade e renda. Resultado: quem recebeu leite materno por mais tempo se saiu melhor nas três variáveis depois de adulto.
A pesquisa foi publicada em março deste ano no periódico The Lancet Global Health. O Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia do Departamento de Medicina Social da UFPel está entre os mais conceituados do mundo na área. Tem a nota máxima (7) na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes) e participa de pesquisas com diversos centros internacionais. A repercussão foi grande e além das fronteiras brasileiras: uma reportagem sobre o estudo chegou a ficar entre os mais lidos no site do jornal inglês The Guardian.
O rigor científico incluiu separação de variáveis como descendências étnicas, apuradas por testes de DNA, consideração do peso ao nascer, situação socioeconômica da família e hábitos da mãe, como fumar durante a gravidez. A redução entre o número de nascimentos e os que participaram da pesquisa final também se deve a critérios técnicos de exclusão, como vítimas de acidentes que possam ter afetado a cognição ou a falta de dados, além das 325 mortes.
Nos três itens testados houve crescimento progressivo nos resultados, conforme o acúmulo de tempo de amamentação. Em média, a diferença entre quem mamou no peito por menos de um mês e por mais de 1 ano foi de 3,76 pontos no teste de QI, de 0,91 no ano de escolaridade a mais e 341 reais de diferença positiva no último holerite. Os três itens foram levados em consideração com o objetivo de estabelecer paralelo entre amamentação e inteligência. “O quadro é cientificamente representativo. Significa que de alguma forma a amamentação melhora as chances de desenvolvimento de uma pessoa até a vida adulta”, afirma o médico Bernardo Lessa Horta, um dos coordenadores da pesquisa.
As razões para o desenvolvimento maior ainda serão estudadas. Não está descartado o efeito psicológico decorrentes de maior vínculo com a mãe ao longo da vida. Nesse caso, a amamentação pode ser tanto a causa do laço estreito quanto a consequência. A principal tese do grupo, porém, é que componentes presentes apenas no leite materno aumentam o desenvolvimento do cérebro. “Uma pesquisa na Inglaterra com crianças em UTI já havia demonstrado desenvolvimento melhor de quem recebia leite humano do que de fórmula”, comenta Horta.
A pedagoga e pesquisadora do Centro de Investigação em Pediatria e Saúde da Criança e Adolescente da Universidade de Campinas (Unicamp), Simone Cordeiro, afirma que o achado soma-se a outros indícios de benefícios da amamentação ao longo da vida. Ela cita a pesquisa da área de Educação de Charles Nelson, de Harvard, que mostrou os problemas do estresse tóxico infantil causado pela separação precoce da mãe e vê conexão. “Nós já trabalhamos com a ideia de que a amamentação faz parte da criação do vínculo essencial entre mãe e bebê”, comenta.
Para ela, as novas evidências devem servir também para a formação dos educadores e para repensar a estrutura de centros de Educação Infantil e berçários. “Infelizmente, ainda não existe uma lei que torne obrigatória a aceitação de leite materno nas escolas. É urgente”, afirma Simone, explicando que não se trata de um processo simples, pois é preciso treinamento para assegurar higiene na ordenha, recebimento, condicionamento e oferta do leite ao bebê.
Advogada especializada em direitos reprodutivos e doula, Priscila Cavalcanti acha que há alguns avanços na sociedade por causa da percepção maior dos benefícios da amamentação. Ela cita como exemplo a lei aprovada em abril, em São Paulo, que multa estabelecimentos ou pessoas que dificultarem a amamentação em público. “Foi um passo importante para evitar constrangimento das mães”, diz.
Priscila também afirma não se surpreender com a ligação entre mamar no peito e resultados melhores em inteligência e escolaridade. “Sabe-se, por exemplo, que influencia na formação da boca e depois no desenvolvimento da linguagem. Isso já ajuda tanto na alfabetização quanto na facilidade de se expressar”, afirma.
Horta espera que as constatações ajudem a melhorar políticas públicas para a maternidade. Segundo ele, o Ministério da Saúde, Fundação das Nações Unidas para a Infância e Organização Mundial da Saúde já foram formalmente informadas e pediram mais dados sobre a pesquisa. Em sua opinião, a prioridade do Brasil deveria ser aumentar a licença maternidade obrigatória. “A mãe ficar menos de seis meses com o seu bebê é um absurdo cada vez maior. A sociedade como um todo perde a chance de ter um indivíduo com mais chances de desenvolvimento logo na partida”, comenta.
O mesmo grupo de cientistas de Pelotas acompanha também nascidos em 1993 e 2004 com questionários similares, porém mais atualizados. A pesquisa que iniciou nos anos 1980, por exemplo, não fazia distinção entre mamar apenas no peito ou em complemento ao leite de fórmula. Os nascidos em 2015 também estão sendo cadastrados para pesquisas futuras.
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