CRÍTICA DE CINEMA
Roteiro primoroso e interpretações precisas mexem com os conceitos do espectador e provocam uma reflexão sobre seus próprios julgamentos fáceis enquanto dura a produção. Perfeito, do início ao fim.
Roteiro explora um caso clássico de denúncia de abuso sexual contra crianças (Reprodução/Internet) |
Alguns diretores dificilmente decepcionam. Eles normalmente apresentam um trabalho interessante. O dinamarquês Thomas Vinterberg é um destes casos. O longa “Jagten”, “A Caça” em português, tinha passado por mim sem merecer a devida atenção. Isso porque eu não tinha percebido o nome que está à frente da produção. Ao perceber que era um trabalho de Vinterberg, observar que o protagonista era o ator da série Hannibal e receber uma indicação contundente de um colega jornalista, não tive dúvidas de que eu deveria abrir uma exceção e assistir ao filme mesmo “atrasada”. Ainda bem que fiz isso. Esta produção é simplesmente imperdível.
Trama
Um grupo de amigos aposta quem vai mergulhar primeiro em um lago no inverno. Crianças passam de bicicleta e outras pessoas da comunidade se aproximam para ver a cena de marmanjos se desafiando na brincadeira. É novembro, e é preciso muita coragem para tirar os casacos, quanto mais mergulhar nu na água gelada. O primeiro a pular começa a ter cãibras, e Lucas (Mads Mikkelsen) entra com roupa e tudo para ajudá-lo. Ele faz parte do grupo de amigos que sempre se reúne para caçar, beber e falar besteiras, e trabalha como professor em um jardim de infância. Amigo próximo do casal Theo (Thomas Bo Larsen) e Agnes (Anne Louise Hassing), Lucas vai enfrentar uma perseguição grave quando a filha deles, Klara, (Annika Wedderkopp) se irrita com ele.
Sempre gostei muito do estilo de direção e dos textos de Vinterberg. Seus filmes mergulham no cotidiano dos personagens e, ao chegar tão perto deles, especialmente de grupos – sejam eles de amigos ou famílias -, revela toda a gama de sentimentos possível e as ações provocadas por eles. É um estilo de cinema psicológico.
A Caça não foge desta filmografia. Ainda que a família, mais uma vez, seja um elemento importante na produção, aqui os grupos sociais ganham protagonismo. E o filme foca em um tema que é muito delicado – e conhecido bem pela sociedade brasileira desde o caso da Escola Base: o risco das denúncias sobre abusos contra crianças.
O ótimo roteiro de Vinterberg e Tobias Lindholm nos transporta para um caso clássico de denúncia de abuso sexual contra crianças. Klara fica muito próxima de Lucas e, irritada com as barreiras que ele coloca em determinado momento, fala “besteiras” para a coordenadora do jardim de infância, Grethe (Susse Wold). A lógica da mulher é compreensível: como uma criança como Klara pode inventar que Lucas tem um “pau levantado”? A afirmação é chocante, de fato. Mas o que vem depois é ainda mais aterrador.
A própria Klara tenta falar, em mais de uma ocasião, que tudo aquilo é uma grande bobagem. Que Lucas não fez nada. Mas os adultos, especialmente os pais da menina, tão preocupados que a criança estaria voltando atrás por medo de represálias, não querem saber de mudar de opinião. E esse é o problema central deste caso e de tantos outros. Quando as pessoas abrem mão da dúvida.
O alerta principal desta produção está no perigo do julgamento fácil, tão alimentado pela crueldade dos dias atuais, feito muitas vezes às pressas por um coletivo qualquer. Algumas vezes este julgamento é feito por comunidades no interior, como a mostrada pelo filme. Outras vezes, por grupos na internet ou em outros espaços que permitem a manifestação coletiva. As pessoas tem pressa em classificar, rotular, julgar. A Caça, este filme brilhante, mostra o perigo que isso pode representar ao transformar o caçador em caça e vice-versa.
Curiosa quanto ao título original do filme,fui atrás para saber o que Jagten significa. A palavra, segundo o tradutor do Google, significa “procurar”. Um sentido muito mais amplo que “The Hunt” em inglês e que, este sim, tem paralelo com o título dado em português. Procurar, por sua vez, pode significar o gesto de buscar um alvo, uma caça, mas também um culpado.
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