Problemas técnicos para levantar voo nessa fábula chamada realidade
ELIANE BRUM
Um homem, chamado de “Pseudo Voador” por jornais de Moçambique, declarou que iria voar do litoral até Meca. Sem escalas. O homem correu pela praia diante do público que se juntou para assistir ao feito, mas não conseguiu decolar. Seu irmão narrava a empreitada com um megafone. A certa altura, avisou que ele tentaria no modo dos helicópteros, o que o obrigou ficar dando voltas em si mesmo. Não levantou voo. Foi anunciado, então, como nos aeroportos, algo mais ou menos assim: “Infelizmente, por problemas técnicos, o voo precisará ser adiado”.
A história foi contada por Mia Couto, o escritor africano de língua portuguesa mais popular no Brasil, durante um bate-papo comigo e com Raquel Cozer, colunista da Folha de S. Paulo, ocorrido no Teatro Geo, na capital paulista. O evento foi promovido pelo Fronteiras do Pensamento, Companhia das Letras, Folha e Livraria da Vila, no último sábado, para o lançamento do livro de contos do autor, Cada homem é uma raça, originalmente publicado em 1990. Ao contar essa história, Mia respondia a uma pergunta sobre as fronteiras permeáveis entre realidade e ficção. E a reproduzo aqui de memória, o que pode resultar em alguma imprecisão.
Essa não foi a única história saborosa contada por Mia Couto em mais de uma hora de conversa, provocando muitas risadas na plateia. Mas foi o tal “Pseudo Voador” quem se grudou na minha nuca, com suas asas fazendo cócegas nas orelhas e derrubando um dos meus brincos, ao voltar para casa. De repente, espiei pela janela o lego gigante que é São Paulo e senti vontade de voar. Mais do que voar, tentar voar, essa crença em algum momento perdida na existência de asas. Quando me mudei para a capital paulista, por pelo menos uma quinzena sonhei todas as noites que tentava sair de São Paulo voando, mas nunca alcançava o fim dela. Minhas asas se terminavam antes da cidade.
Esses, que costumam ser carimbados como malucos, nos devolvem um encantamento que só alcançamos na infância. Quando uma criança abre os braços e grita “Estou voando...”, ela está voando. Em geral, os pais veem como algo desejável e até gracioso essa fabulação nas crianças pequenas. Em que momento será que, para os manuais, esse voo vira patologia e a criança faz um pouso forçado num consultório psiquiátrico? Oito, dez, 12 anos? O próprio Mia Couto, registrado como António Emílio Leite Couto, achava que era um gato quando criança e por isso se renomeou Mia, com a espantosa cumplicidade de seus pais, que acolheram a fabulação e com ela um filho que fabulava.
Lembro-me de ter sido uma fabuladora compulsiva quando criança e adolescente. O que chamavam de realidade me parecia bastante inabitável. Criei, então, um jeito de parecer estar no mundo real, sem de fato estar. Estava, porque era eu lá. Mas uma outra que também era eu vivia nas minhas histórias. Dava um certo trabalho, porque é preciso deixar um quarto do ouvido no mundo de fora, para responder por monossílabos ao que nos é perguntado, assim como se manter andando. Keep going, keep going.
Voltava do colégio para casa com um bando de amigas, e elas nunca souberam que aquela que ria com elas possuía, na composição societária, uns 10% de mim. Os outros 90% eram fadas, duendes, astronautas, cavaleiros andantes, princesas, vampiros e alienígenas, meus eus preferidos que viviam no mundo de dentro, naquela época tremendamente mais vasto. As noites de inverno eram os melhores momentos para ser esses todos, quando eu me enfiava na cama o mais cedo possível, cobria a cabeça, sem medo de ser asfixiada, e fabulava até o sono me passar uma rasteira. Uma vez recordo-me de ter sido um duende com o prosaico nome de Caroline (por causa da princesa de Mônaco) por uns três meses, até que, por razões não muito claras, morri para virar uma índia de nome Potira (por causa do programa do Chacrinha), que caçava dragões em Marte.
Só saía de meus interiores quando expressamente convocada, tipo uma prova do colégio ou uma conversa séria em casa. E por vontade própria, para ouvir histórias dos meus parentes da colônia, sentada num banquinho, com um prato daquelas bolachas brancas de tia no colo, aquelas que hoje apitariam no sistema de controle de açúcar e colocariam minhas tias Nair, Iolanda e Cristina no paredão. Entregava-me então à fabulação dos adultos com sua histórias fantasticamente reais sobre os últimos acontecimentos no povoado, a cuja escuta eu só me credenciava porque pensavam que eu era pequena demais para entender. Ou na cidade, com minha avó materna, embrulhada em lençóis de infelicidade, que só largavam seu corpo miúdo quando contava causos da família povoados por piratas, fantasmas e princesas, segundo ela, e ela não estava brincando ao dizê-lo, de veracidade comprovada.
Andei saindo de minha fabulação incessante para o mundo que chamavam de real lá pelos 14, 15 anos, por causa dos meninos. Não sei bem como foi que aconteceu, mas intuí que sexo estava do lado de fora e valia a pena dar uma olhada. Eu me considerava até bastante experiente, depois de ter lido algumas das páginas mais picantes da literatura brasileira. (Obrigada Aluísio Azevedo, Josué Guimarães e Jorge Amado!) Mas só bem mais tarde fui entender que, se havia um corpo outro, que em geral queria se enfiar no meu, a coisa só dava certo se ambos ficassem fabulando juntos ou consigo mesmos. E não era lá muito fácil encontrar bons fabuladores, num mundo que valorizava tanto a tal da realidade. Se alguém tivesse a gentileza de explicar bem cedo que sexo é fabulação, muita frustração de parte a parte seria evitada e as revistas femininas poderiam se dedicar a assuntos mais excitantes que orgasmos múltiplos.
Aos poucos fui percebendo que ser adulto era ter de aprender a viver e a conviver com um universo de fabulações muito mais intrincadas, algumas delas francamente perigosas. Como a de Hitler, ao fazer a maior parte da população de um país acreditar – porque convinha acreditar –, que a realidade provava que os arianos eram uma raça superior e por isso exterminar judeus, ciganos, homossexuais e deficientes era legítimo. Ou, num exemplo atual, a fabulação de que o “vilão” seria Edward Snowden, por ter denunciado os abusos de seu país – e não o governo americano, ao espionar cidadãos do mundo inteiro, com objetivos que vão muito além de combater o terrorismo. Dias atrás, Bradley Manning, o soldado condenado a 35 anos de prisão por entregar documentos secretos ao WikiLeaks, declarou que é mulher e se chama Chelsea Manning. Enquanto ele dizia “sou mulher”, alguns jornalistas disseram “quer ser mulher”, o que pressupõe um descompasso entre interpretações sobre o que é a realidade. Para Manning, características físicas ligadas ao gênero masculino são provas de que seu corpo não corresponde à sua realidade interna, para alguns jornalistas são provas de que sua realidade é ser um homem. Mas, haveria homem e mulher para além da fabulação?
Não poucas vezes somos obrigados a lidar com a fabulação que outros precisam fazer de nós, o que diz muito mais deles do que de nós. Mia Couto, por exemplo, depois de ter sido reconhecido internacionalmente como escritor, conta que algumas pessoas passaram a acreditar que, por ser africano, ele só poderia ser negro. A certeza provoca algum desconforto quando o conhecem pessoalmente e constatam que é branco. Como aconteceu com um pesquisador francês, que gastou horas revistando a árvore genealógica de Mia, no desespero de descobrir um galho, ou ao menos uma folhinha que fosse, para manter toda uma tese em pé.
Por tudo isso não consigo me esquecer do “Pseudo Voador” da história contada pelo escritor. Talvez o homem tenha percebido que a maior fabulação de todas é a realidade e, então, achou por bem dar-se asas. Senti um naco de inveja do desassombro desse homem, correndo pela praia à vista de todos. E isso não para fazer um voozinho mixuruca, até a padaria da esquina. Nada disso. Ele queria ir até Meca, e sem escalas.
Depois de rir da história, porque ela é mesmo muito engraçada, me senti tão “quase”. Assim como o voador é “pseudo”, Mia Couto explicou que, em Moçambique, é possível ser “quase”. Não “ser ou não ser”, como Hamlet, mas “quase ser”, o que é uma posição filosófica dotada de uma complexidade bem maior. “Shakespeare proclamou a existencial dúvida do ‘ser ou não ser’ porque, certamente, não estava avisado desta categoria do ‘quase ser’”, escreveu Mia Couto em um dos ensaios de E se Obama fosse africano? (Companhia das Letras). “Nem eu sabia dessa possibilidade. Pois, se soubesse, quando me perguntassem se me considero mais um escritor do que um biólogo, logo eu responderia: ‘Quase considero, quase considero.’”
Em Moçambique, é possível ser “quase cobra” ou “quase mulher” ou “quase negro”. Pelo “quase” nos aproximamos todos do “quase voador” – não mais “pseudo”.
Não é isso que fazemos a cada dia? Quase voamos. Mas, com os pés atolados demais no chão, nos falta um tanto de asas. Como somos insistentes, porém, tentamos como helicópteros e giramos no mesmo lugar. Gira, gira, gira. Hum, não acontece. Ainda assim, não desistimos. Anunciamos, então, pelo nosso megafone interior: “Atenção, senhoras e senhores, por motivos técnicos, o voo terá de ser adiado”. E, no dia seguinte, lá estamos nós, auscultando o céu para saber se, desta vez, dá.
Essa parte da gente é tão bonita!
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