No ano passado, a Turquia, até então reconhecida mundialmente pela preservação do secularismo, introduziu o ensino religioso nas escolas públicas. Aos poucos, tem também diminuído a oferta de vagas em colégios considerados laicos.
“Isso traz a segregação entre os sexos e acaba limitando as garotas ao lerem o Corão”, lamenta a líder feminista Yildiz Temurtukan. De acordo com dados divulgados por uma organização de professores, apenas 360 mil estudantes conseguiram se matricular para cursar o Ensino Médio tradicional no próximo período letivo. O restante, cerca de 700 mil, terá de frequentar instituições que privilegiam o estudo do Corão.
Para Yildiz, não é à toa que na última década o índice de feminicídio no país aumentou 14 vezes. “Tudo isso é provocado pelos representantes do governo. Eles declaram abertamente que mulheres e homens não são iguais e nem poderão ser”, relata.
“Mas as mulheres estão na linha de frente das lutas, nas ruas, nos parques, nos fóruns. Estão comprometidas a não se subordinarem ao fascismo islâmico”, anima-se. E é essa experiência de resistência e o cotidiano da Turquia que Yildiz espera compartilhar ao desembarcar no Brasil para o 9º Encontro Internacional da Marcha Mundial de Mulheres (MMM).
Junto com ela, outras 1.600 participantes se reunirão a partir de hoje no Memorial da América Latina, em São Paulo (SP). “É uma porta aberta por onde passam todas as análises internacionais, lutas e alternativas. É um espaço que nos faz sentir mais forte contra os nossos inimigos”, define Yildiz.
Em 31 de agosto, elas farão um ato pelas ruas da capital paulista para “reafirmar o feminismo como projeto para mudar o mundo”.
Perspectivas
A MMM começou sua atuação em 2000, quando mulheres de 159 países se uniram em uma grande campanha contra a pobreza e a violência. Desde então, a cada cinco anos, a MMM tem organizado mobilizações globais. A próxima, que acontecerá em 2015, será discutida no encontro do Brasil.
“Uma das questões colocadas para nós hoje é o debate das alternativas. Há uma expectativa grande das participantes por acreditarmos que a América Latina tem possibilidades diferentes de ação”, defende Nalu Faria, coordenadora da SOF (Sempreviva Organização Feminista).
“Há um discurso de igualdade, que toca muito no tema da paridade, e dá a ideia de que a questão é a participação das mulheres. Mas não foca na transformação dos espaços de poder e de participação”, afirma. “Uma questão fundamental é o aporte do feminismo, é pilharmos o conceito de política e de economia, questionando o traço patriarcal e androcêntrico de nossa sociedade de considerar como público, político e econômico só aquilo que está dentro das representações do que é o mundo masculino”.
Patriarcado
Sem dúvida, uma das palavras mais ditas e ouvidas no encontro será “patriarcado”. “Temos trabalhado muito em compreender quais são os mecanismos de atuação do modelo patriarcal em relação às opressões. Esse patriarcado existe quando olhamos para o controle sobre o corpo, a sexualidade e o trabalho das mulheres. É um elemento permanente. E qual é realmente a diferença entre a exigência da burca de um lado e a banalização do corpo nu de outro?”, indaga Nalu.
Para Yildiz, “desde o começo da revolução industrial as mulheres têm lutado para serem aceitas como iguais aos homens, para serem aceitas como seres humanos plenos. Apesar de todo o discurso mainstream de gênero, a situação em geral tem piorado. A razão para a resistência aos direitos das mulheres ser tão forte é que o capitalismo é um sistema baseado em desigualdades de gênero. O patriarcado constituiu o terreno invisível para as relações capitalistas visíveis. Na história do capitalismo não há era sem patriarcado e parece que a ideologia do livre-mercado não pode sobreviver sem a exploração e a opressão das mulheres”.
A turca afirma que “não é coincidência que todos os tipos de violência contra mulheres e garotas têm crescido, de estupros coletivos a feminicídios, de violência doméstica a assédio sexual no trabalho. É porque as mulheres estão clamando por sua autonomia, não apenas econômica, mas sobre seus corpos e vidas, de uma maneira organizada ou individualmente. E como nós estamos reclamando nosso lugar no mundo, estamos sujeitas a mais violência, seja do Estado ou dos homens”.
Mas há esperança: para ela, enquanto há 20 anos discutia-se a obrigatoriedade moral da virgindade, hoje é possível falar abertamente sobre assuntos considerados privados, como casamento, aborto e violência doméstica. “E as mulheres têm declarado que não vão aceitar qualquer regra sobre suas vidas e corpos”.
“Queremos dar visibilidade à força das mulheres em construir alternativas nos processos de resistência”, completa Nalu.
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