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sábado, 24 de agosto de 2013

A luta pelo parto normal

Quando chegar a hora, que tal a mãe esperar o bebê decidir?

* POR CARMEN GUERREIRO
Bernardo Ferreira com penas 8 dias pelas lentes da fotógrafa Monalisa Marques (Foto: Monalisa Marques)
Bernardo Ferreira com apenas 8 dias pelas lentes 
da fotógrafa Monalisa Marques (Foto: Divulgação)
Estamos assistindo a uma revolta da categoria médica por causa de salário, melhores condições de trabalho, mais valorização da profissão. Muitos são contra a vinda de médicos estrangeiros, muitos também se indignaram com o programa Mais Médicos.
Embora eu não esteja aqui para me colocar a favor ou contra essas medidas, me surpreende muito que não exista uma comoção proporcional por parte dos médicos em torno de questões seríssimas da saúde brasileira hoje: a relação promíscua de muitos profissionais com a indústria farmacêutica e o abuso da cesárea nos partos.
E quero falar desse último problema. Sobre esses temas, existe um silêncio constrangedor entre os médicos e, quando questiono alguns deles, sempre ouço um “espera aí, não é bem assim...” Mas a justificativa nunca me convence.
Minha irmã teve seu segundo filho em 2012, que nasceu de parto normal, contra todos os empecilhos colocados hoje para esse procedimento no Brasil. Quando o bebê nasceu, passamos mais tempo na maternidade discutindo as peripécias e dificuldades da jornada que ela passou para conseguir o tal do parto normal, tão raro hoje no Brasil, do que falando da saúde do pequeno. Ela precisou driblar constantes obstáculos e encontrar uma brecha para ter sucesso em seu sonho de dar à luz por parto normal.
De pronto, precisou mudar de médico. Seu ginecologista e obstetra de sempre, que fez seu primeiro parto, não era mais confiável. Antes de completar as 40 semanas ele marcou a cesárea, fortemente contra a vontade da minha irmã, simplesmente porque o resultado de uma das ultrassonografias ficou duvidoso quanto ao tamanho do bebê, que parecia grande (3,5 kg, mas nasceu com um quilo a menos).
Eles poderiam ter refeito o exame e, de qualquer fora, esperado mais três semanas. Na primeira consulta com o novo médico, recomendado por uma amiga que havia conseguido fazer um parto normal, ela se assegurou de que ele não era um cesárea-maníaco.
No 8º mês de gravidez, procurou uma Doula, uma acompanhante de gestantes (não deve ser confundida com uma parteira, pois só acompanha o trabalho de parto), mas essa moça no caso tinha a formação de enfermeira-obstetra, o que fez com que no hospital não houvesse aquele constante entra-e-sai de enfermeiras do estabelecimento.
Foi então a vez de procurar um hospital que facilitasse o parto normal. Descobriu duas coisas: a primeira era que se a grávida chega no começo ou no meio do trabalho de parto, entra na faca – afinal, o hospital não quer segurar um leito durante muito tempo. Minha irmã então esperou 24 horas desde que as contrações começaram até que o intervalo entre uma e outra estivesse apenas de três minutos. Correu o risco de pegar trânsito (afinal, estamos em São Paulo) e de ter o filho no meio do caminho.
O segundo aprendizado era que nem todos os hospitais- aliás quase nenhum- facilitavam o parto normal, ainda mais acompanhado por uma doula, figura encarada com preconceito pela equipe médica. Por isso ela se informou sobre os poucos hospitais que se diziam especializados em parto normal (como se fosse um serviço especial!).
Entre apenas três, a doula explicou que somente um deles de fato deixava a grávida ser acompanhada por alguém como ela (que nada mais é que uma enfermeira particular). Permitia usufruir totalmente a “sala de delivery”, um quarto especial com banheira, bola de pilates e diversos espaços para o conforto da mãe na hora de dar à luz. Isso tudo na maior cidade da América do Sul!
Quando finalmente chegou a hora e o segundo filho nasceu bem e saudável (contrariando mais um mito de que, depois que a mulher tem um filho de cesárea, não pode mais fazer parto normal), o médico perguntou para a minha irmã: “Por que fizeram cesárea no seu primeiro filho, mesmo?” E quando ela explicou o suposto motivo, ele apontou o dedo para a própria cabeça e a balançou, em reprovação. “Tem gente, né…?”, disse, mas não quis terminar. “Sua bacia é ótima para o parto normal!”
A dificuldade da minha irmã reflete um problema gravíssimo que o Brasil e suas mães parecem ignorar: enquanto a OMS recomenda que apenas 15% dos partos em um país sejam cesarianas, na rede particular esse número alcança absurdos 85% na nossa terrinha (dado da ANS).
E isso por quê? A cesárea é uma cirurgia, ou seja, pode ser marcada para um dia e horário escolhidos, o que traz conforto para mães e médicos, que não querem ser pegos de surpresa pelas contrações, que podem vir no horário de rush, no feriado, de madrugada… Ou evita até que o bebê nasça em um dia de um signo que a mãe não escolheu, imagine só o absurdo!
Além disso, um fator determinante para os médicos e hospitais é que, como é um procedimento cirúrgico, a cesárea é mais rápida, vagando mais leitos (enquanto há mulheres ficam mais de 24 horas em trabalho de parto). A cesárea é portanto muito mais lucrativa para a equipe que faz o procedimento.
Menos dor, mais dinheiro (que o plano de saúde paga, então, não reflete no bolso dos pais), menos tempo. Parece mágico, não? Não é bem assim. Há um motivo que faz a OMS recomendar a cesariana apenas em casos de extrema necessidade. A natureza é mais sábia que o homem, por isso existe o momento em que o bebê está pronto para nascer (isso, é claro, em casos em que não há nenhuma complicação – e que são os defendidos pela OMS).
Durante o trabalho de parto, uma série de transformações acontece no corpo da mãe: com a dilatação, um hormônio é liberado e prepara os mamilos para amamentar e também envia uma mensagem para o cérebro que se traduz no prazer da mãe no contato com sua prole. Ao passar pela canal vaginal, a pressão feita no corpo do bebê também ativa uma série de mecanismos no seu organismo que, na cesárea, precisam ser feitos pelos médicos. Isso são apenas algumas das vantagens, é claro.
Minha irmã também citaria a dolorosa recuperação pós-cirúrgica da cesárea, quando ela gostaria de estar focada apenas no seu bebê mas teve que ficar quatro horas em uma sala de recuperação e sentiu fortes dores por semanas (após o parto normal, o bebê ficou diretamente com ela). Ou a constrangedora demora da barriga para voltar ao seu formato normal, e a cicatriz que ela conserva até hoje por ter problema com formação de queloides.
Comprovação disso tudo é que no sistema público de saúde, o número de cesáreas é de 35%, 50% a menos do que na rede particular. Simples: os leitos são coletivos (cabe mais gente, não precisa vagar leitos o tempo todo), quem paga é o Estado (e por isso quer pagar menos, e o parto normal é mais barato), a mãe não tem muita escolha do procedimento ou do médico que irá atendê-la.
Não estou fazendo uma campanha contra a cesárea. Ela é um procedimento muito necessário e que já salvou muitas vidas. Mas é uma alternativa para poupar a vida da mãe e do bebê, e não um acessório opcional de veículo por trazer mais conforto momentâneo.
Eu e meu marido estamos fazendo planos para engravidar e o que mais me assombra é passar por uma odisseia desnecessária para conceber naturalmente: procurar um médico que saia do status quo e faça parto normal (se não houver complicações que exijam a cesárea, logicamente), conseguir vaga em um hospital que facilite o procedimento, esperar um tempão em casa para chegar no hospital apenas na hora de nascer, contratar uma doula para ajudar no processo…
O sistema de saúde brasileiro está praticamente obrigando as mulheres a conceber por meio de uma cirurgia. Isso é criminoso! E nenhum médico vai às ruas protestar contra isso?
perfil Carmen Guerreiro - blog da Ruth (Foto: ÉPOCA)

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