"Não basta ser criança para ter infância." Essa frase contundente está presente no documentário "A Invenção da Infância" (disponível na internet) dirigido por Liliana Sulzbach, que propõe uma reflexão sobre os estilos de vida de nossas crianças no mundo atual. É uma frase que persegue meus pensamentos, conduz o meu trabalho e que, no último sábado, me fez pensar muito.
É que no dia 24 de agosto comemorou-se o Dia da Infância. Grandes reportagens a esse respeito nos veículos de comunicação ou mesmo pequenas notas lembrando a data, por acaso apareceram? De um modo geral, pouco vimos a esse respeito. A lembrança da existência dessa data parece ter ficado restrita aos grupos que, de maneira direta ou indireta, trabalham com e/ou para crianças.
Faz sentido esse silêncio da sociedade a respeito de uma data que, aliás, não deve ser considerada comemorativa. A infância está desaparecendo e temos contribuído de modo expressivo para isso. Como temos feito isso?
Para começar a pensar, temos de considerar que ser criança é um fato biológico, mas o modo como ela vive essa etapa da vida, que vai até a adolescência, depende de múltiplos e complexos fatores, entre eles o modo social de pensar a criança. É aí que entramos.
De um modo geral, cada vez mais a criança, notadamente a que pertence à família de classe média, tem sido tratada como um ser que precisa ser preparado para o futuro. Há algumas décadas, passamos a acreditar que quanto mais precocemente a criança for engajada em situações de estudos formais, maiores as chances ela terá de êxito no futuro.
Já temos inúmeros estudos e pesquisas que comprovam que iniciar o contato com o conhecimento sistematizado mais cedo não contribui no aprendizado que deve ocorrer a partir dos sete anos. Por isso, tudo o que conseguimos ao fazer isso é deixar de ver a criança em seu presente, ou seja, a vemos muito mais como um ser que, um dia, será alguém.
Também temos deixado a criança cada vez mais tempo na escola. As três ou quatro horas iniciais se transformaram, progressivamente, em cinco, seis, oito, dez e até 12 horas de permanência no espaço escolar! Se considerarmos que ir para a escola é o trabalho da criança, elas têm trabalhado demais, à semelhança de seus pais, os adultos.
Temos entendido que o tempo de permanência na escola é uma necessidade social já que os pais têm se dedicado muito à vida profissional. Conheço profissionais que trabalham muito além da jornada e justificam o excesso como necessário para dar conta da responsabilidade profissional. E a pessoal, com os filhos, onde temos colocado tal responsabilidade?
Crianças têm se alimentado como adultos que se alimentam mal. E, como estes, têm enfrentado doenças por causa disso. Esse fato não ocorre por falta de informação dos responsáveis pelas crianças e sim pela falta de paciência e dos cuidados necessários que elas necessitam.
Ah, mas elas pedem, exigem até, as porcarias ofertadas insistentemente e disponíveis em todos os cantos. Sim, mas por isso vamos permitir que fiquem escravas de seus impulsos e que consumam como adultos?
Abordei dois pontos apenas de nossa contribuição direta para o fim da infância. Há muitos outros. Por isso, todo dia deveríamos fazer essa reflexão: queremos que nossas crianças tenham infância, ou já consideramos esse conceito obsoleto?
Rosely Sayão, psicóloga e consultora em educação, fala sobre as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no ato de educar e dialoga sobre o dia-a-dia dessa relação. http://folha.com/no1332477
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