por Patrícia Gomes, do Porvir
A senhora, ainda vestida com o uniforme da empresa onde trabalha, chega com o filho, um garoto de uns 16 anos. Espera a diretora terminar o atendimento que está fazendo e dispara: “Dona Eda, fui eu quem lhe telefonou ontem. É sobre esse menino. Ele é muito preguiçoso. Eu saio para trabalhar e ele não levanta para ir à escola. Ele está perdendo as oportunidades que está recebendo por causa…”. Dona Eda não a deixou continuar. “Vamos começar diferente?”, pergunta a diretora para o garoto. “Me dá um abraço. Você é muito bem-vindo. Não me importa o que aconteceu até você chegar aqui. Minha única exigência é que você tenha compromisso com os estudos”, diz ela, em tom severo, ao novo aluno. E continua: “Você sabe por que você precisa estudar?”, pergunta ao garoto, que nada responde. “Não é para ter um diploma, é porque conhecimento te dá poder. Te ajuda a argumentar, a dizer o que você quer, a decidir a sua vida”, disse ela. Mais dois minutos de conversa e combinam o horário em que ele vai estudar. A mãe fica exultante e o garoto segue para fazer um diagnóstico de aprendizagem. Pronto. Tudo certo para ele começar na segunda-feira.
Dona Eda Luiz é diretora e a grande mente por trás do Cieja Campo Limpo, uma escola de ensino fundamental da rede municipal de São Paulo voltada para a educação de jovens e adultos. Lá estudam pessoas de 15 anos em diante, dos mais diferentes perfis – “no Cieja, tem lugar para todo mundo”. São jovens expulsos das escolas de origem, trabalhadores que resolveram terminar os estudos, senhoras que vão ocupar o tempo e todo o tipo de estudante que o ensino regular teve dificuldades de absorver, como cegos, surdos, pessoas com dificuldades mentais. Dos cerca de 1.300 alunos matriculados, 300 têm algum tipo de necessidade especial.
Parte desse acolhimento se explica pela metodologia da escola. O Cieja oferece seis turnos distintos, cada um de duas horas e meia de duração – baseado na legislação que permite que metade do tempo do aluno seja cumprido com atividades fora da escola. Em vez das séries tradicionais, que vão da classe de alfabetização até o 9o ano, os alunos são distribuídos em quatro módulos, segundo seu nível de conhecimento: alfabetização, pós-alfabetização, intermediário e final. Em cada um dos turnos, há turmas dos quatro módulos avançando mais ou menos no mesmo ritmo. Assim, se um aluno precisou faltar porque tinha um compromisso no trabalho em determinada hora, ele pode vir em qualquer turno do dia compensar a aula perdida.
“Em 2000, quando elaboramos a proposta do Cieja, estavam construindo o shopping e o hospital da região. Não fazia sentido só ter aula à noite. Nossos trabalhadores trabalhavam à noite, de madrugada e não podiam estudar”, lembra Eda. Além de oferecer aulas de manhã, de tarde e de noite, a diretora também adaptou a orientação pedagógica que recebera. Na época em que a educação de jovens e adultos fora implantada, a metodologia consistia em dar apostilas para que os alunos estudassem em seu próprio ritmo e, caso tivessem dúvidas, poderiam passar até 10 minutos com o professor. No entanto, dona Eda fez um cálculo simples: se seis alunos reunissem os dez minutos a que tinham direito, o grupo poderia ter uma aula de uma hora. Nascia aí a ideia dos grupos temáticos adotados por todos os Ciejas da cidade.
Hoje, no lugar das disciplinas, o Cieja Campo Limpo trabalha com quatro grandes áreas do conhecimento: linguagens e códigos (português e inglês), ciências humanas (história e geografia), ciências do pensamento (ciências e filosofia) e ensaios lógicos e artísticos (matemática e artes). Cada uma dessas áreas fica com os alunos por quatro semanas desenvolvendo o que, por lá, se chama de sequência. Nela, os professores trabalham o método inquisitivo, propondo aos alunos problemas e os levando a pensar em soluções. Todo semestre, a escola decide trabalhar um tema, que deverá estar nas sequências de todas as áreas e, no fim do período, devem apresentar um trabalho final de intervenção na comunidade. No semestre passado, cita dona Eda, o tema foi cidadania. “Eles fizeram fôlderes e entregaram para os motoristas de lotação explicando como tratar idosos, estimulando as pessoas a deixarem os bancos da frente para pessoas com dificuldade de mobilidade”, afirmou a diretora, toda orgulhosa.
O modelo
O projeto pedagógico do Cieja Campo Limpo serviu de base para todos os outros da cidade. Em 2007, conta dona Eda, todos os centros integrados de educação de jovens e adultos correram o risco de fechar. A prefeitura queria que as escolas regulares absorvessem esses alunos. Dona Eda soube e ficou nervosa. Mas aí, como ela disse, a sorte a ajudou. Uma escola municipal, umas ruas acima, teve um problema grave na caixa d’água. Deu imprensa, o então secretário de Educação, Alexandre Schneider, foi lá conferir o que estava acontecendo. Dona Eda então escreveu uma faixa, convocou seus alunos com diferentes necessidades especiais e foi para a porta da escola vizinha dizer que o “Cieja não pode fechar”. “O secretário pediu que desligassem as câmeras e veio falar comigo. Prometeu vir visitar a escola dois dias depois e veio”, conta a diretora, mostrando uma fotografia da ocasião. “Ele veio aqui e viu que a gente fazia um trabalho que a escola regular não teria condições de fazer. Mas me desafiou: queria que eu escrevesse meu projeto. Fui até os outros 13 Ciejas e montamos um projeto único. Foi uma correria, mas deu certo”, conta ela.
Os Ciejas não só não foram fechados como passaram a usar o projeto elaborado pela dona Eda em conjunto com as outras escolas. E o modelo de inclusão de dona Eda se tornou referência. No tempo que a reportagem esteve na escola, flagrou a cor dessa diversidade nas diferentes pessoas que circulavam por aquele ambiente colorido de duas casas: uma menina de ossos de vidro, cuidadosamente acompanhada por um cuidador; um monge que se voluntariou a dar aulas de meditação; a aluna mais velha da escola que, aos 93 anos, voltava depois de um período doente; uma senhora egressa dos manicômios femininos que foram fechados; alunos de outros turnos, que vieram à escola comer o panelão de peixe – delicioso, por sinal – cozinhado por dona Zilda e que alimenta quem chegar; o Alemão e seus três irmãos, que merecem um capítulo a parte.
Alemão, não. Anderson
O Porvir chegou ao Cieja Campo Limpo pontualmente às 11h, hora marcada com dona Eda para que a reportagem conhecesse a metodologia e as lendas envolvendo a diretora da escola. Mas dona Eda não estava. Ela tinha ido dar um depoimento de última hora na Justiça. “Você me desculpa, mas eu fui lá falar do Alemão. Esse menino é ótimo. Ele me ajuda muito aqui na escola. Alemããão, vem cá”, chamou ela, pela janela. O rapaz se aproximou, cumprimentou quem estava na sala. “Ele está há três anos limpo do crack. Quando ele chegou aqui, ele não falava, não tinha noção de tempo e espaço. Olha como ele está agora. Tem coisa mais linda?”, pergunta ela. O rapaz tenta obter a guarda dos irmãos mais novos, que moram em um abrigo desde que sua mãe, que era usuária de crack, morreu por complicações do vício. E dona Eda foi lá falar em seu favor.
O jovem, de gestos contidos e rosto com marcas que o tempo na rua deixou, pega o celular no bolso e mostra uma foto. “Eu tinha 38 kg quando cheguei aqui pedindo ajuda. Ela conseguiu uma vaga para mim numa clínica e me prometeu que eu teria uma casinha quando saísse de lá”, disse ele. Depois de oito meses de tratamento, recebeu alta e o prometido. Com a ajuda da comunidade, dona Eda conseguiu uma casa e a mobiliou para o rapaz. Agora ele trabalha como cuidador dos 18 alunos cadeirantes da escola e dá conselhos aos jovens envolvidos com droga. Fica com os irmãos nos fins de semana, enquanto se estrutura para recebê-los. “Minha vida agora tem sentido. Estou aprendendo a amar, a ser amado. Antes eu era só o Alemão. Agora eu sou o Anderson e tudo isso é graças a ela”, diz Anderson, abraçando a diretora.
“Ele deu certo, mas muitos não dão”, diz dona Eda. Para ela, o segredo dessas histórias é mostrar que a escola está sempre aberta, para quem quiser, o tempo todo. “Esse aqui é um lugar onde eles se sentem respeitados, por isso eles respeitam tanto a escola”, afirma, mostrando o jardim bem cuidado e as paredes coloridas, mantido também com o dinheiro de doações de empresários da região.
O maior desejo de dona Eda? Fazer o projeto durar. “Eu abro e fecho a escola todos os dias. Poderia me aposentar no fim do ano, mas só vou me aposentar quando me expulsarem. Mas isso aqui não pode depender de mim”, diz a diretora, que pede desculpas e sai. Uma reunião esperava por ela.
* Esta reportagem faz parte de uma série especial sobre educação integral, acompanhando o lançamento do Centro de Referências em Educação Integral, uma iniciativa apoiada pelo Porvir e pelo Inspirare. A plataforma do centro estará disponível a partir de 29 de agosto, no www.educacaointegral.org.br.
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