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domingo, 18 de agosto de 2013

Crianças do futuro

Se você pudesse tirar uma característica irritante do seu filho pequeno, conseguiria eliminar alguma?

ISABEL CLEMENTE

8 de agosto de 2213. No Brasil do futuro, não há crianças aguardando adoção. O caminho mais usado pelas pessoas, solteiras ou casadas, interessadas em ter ou aumentar a própria família é a clonagem. Pela clonagem, pode-se escolher crianças cuja carga genética já vem sem uma das quatro características que os pais consideraram as mais irritantes nos filhos nos últimos dois séculos.
Um casal com dois filhos chega para uma entrevista atraído pela propaganda. Com a palavra, o cientista encarregado de explicar aos candidatos as vantagens de cada tipo.

– Temos a criança que não implica com o irmão, ideal para casais como vocês que já têm dois filhos e podem imaginar como será a vida com três daqui para a frente.
O casal sorri. Sim, é fácil imaginar.
– Com esta criança, vocês eliminarão de vez aquelas irritantes desavenças familiares que, não raro, acabam em agressões físicas entre as crianças, choro e ranger de dentes.
– Verdade – diz a mulher, convicta.
– Muito irritante – concorda o homem.
– Considerem as vantagens de uma criança que não briga com o irmão: ela jamais vai gritar “não fui eu“ ou “foi ele“ porque ela é incapaz de jogar a culpa para cima do outro.
– Interessante...
– Ela também não tem aquele ímpeto de implicar por implicar, de ficar provocando o outro, sabe? – diz o técnico.
O casal assente.    
– Sem falar que, com essa criança, vocês não terão mais que apartar brigas, nem ficar pensando em estratégias de conciliação ou naquelas brincadeirinhas de obrigar os filhos a se abraçar. Isso dá muito trabalho.
– É verdade, mas eu queria saber.... – diz o homem – Essa criança será capaz de brigar pelos seus objetivos, se defender de um coleguinha com personalidade mais forte?
– Bem.... – pigarreou o cientista antes de continuar – essa é uma das desvantagens da criança que não briga com o irmão.
– Podemos passar para o outro tipo então, por favor?
– Claro. Acredito que vocês vão gostar muito do tipo que não fala alto.
– Hummm...
– É muito irritante crianças falando alto o tempo todo em todo lugar, não é?
– Sem dúvida.
– Sem falar que elas costumam falar mais alto ainda justamente onde não devem.
– Verdade.
– Chamam sempre aos berros. Mamanhêeeee, papaiêee...
– Isso é engraçado, né? – comentou a mulher.
– É, mas irrita. E quando a senhora está no telefone falando sobre algo importante com alguém com quem não tem intimidade?
– Bem...
– Chato, não?
– Chato. Mas elas gargalham bem alto?
– Não exatamente. São muito educadas. Sorriem. 
– Elas não se escangalham de rir?
– Não. O isolamento do gene de descontrole do tom da voz apagou o da gargalhada.
– Podemos partir para o outro tipo? – sugeriu o homem.
– Sim, esse aqui agrada a todos. É o tipo mais requisitado disparado: a criança que não se suja!
– Jura? – espantou-se a mulher.
– Juro. Ela é incapaz de derramar suco de uva na roupa, leite de chocolate na mesa. Não deixa nem farelo de bolo cair no chão.
– In-crí-vel! – disse o casal, juntinho.
– Sabe aquele grito que a senhora dava toda vez que via um copo de suco na beirinha da mesa? Não precisará mais dar!  
O homem piscou para a mulher compreensivo. Ela suspirou.
– A senhora também não precisará mais mandar a criança arregassar as mangas antes que ela apoie o cotovelo na sopa. Esse tipo não faz isso.
– Puxa... – disse a mulher, com os olhos brilhando.
– Essa criança ainda economiza guardanapo porque ela não limpa a boca e amassa o papel logo depois, inutilizando-o. Ela aproveita toda a superfície limpa do guardanapo para se manter asseada.
– Uau... – suspirou o homem.
– Tem mais: essa criança não derrama iogurte no chão!!
– Nunca!?
– Nun-ca!
A empolgação do casal era visível. Esse tipo de criança parecia irrecusável porque nada mais irritante do que ter que trocar a camiseta que você acabou de colocar no filho, levar três mudas de roupa para uma festa; correr toda hora para jogar um tira-mancha no molho de tomate. 
– Esse filho não vai limpar o nariz de meleca na sua gola, nem passar os dedos de gelatina no seu vestido...
– Huumm... bem, essas coisas são engraçadas também né? – disse a mulher, com um olhar meio nostálgico – Lembro que o Pedro quando era pequenininho limpava o nariz com o dorso da mão, aí ele vinha todo disfarçado e encostava na calça jeans do Felipe, lembra amor?
– Lembro sim! – disse Felipe, rindo, olhar distante – Ele não se corrigia!
– Você estava sempre com uma marca de catarro seco na perna todo inverno, quando ele gripava – disse, caindo na gargalhada – era horrível!
O cientista interrompeu. 
– Desculpe, talvez vocês gostem do último tipo, o que não dá trabalho para dormir.
– Como é que é?
– Deita e dorme. Não enche o saco, entenderam? Não fica dizendo que tá sem sono... Não fica pedindo água depois que deita. Não tem vontade de fazer xixi de noite. Ess criança gosta de dormir, sacou?
– Olha isso! – a mulher, espantada.
– A senhora vai ter outro filho mas vai dormir como nunca dormiu na vida!
– Tentador – disse o homem.
– Essa criança não vai pra sua cama no meio da madrugada. Nem pesadelo tem!!
– Nunca?
– NUNCA!
– Ela não chama a gente de noite porque tá com medo?
– Não, imagina, pra quê isso!?
– ...ela não pede história na hora de dormir? – quis saber o pai.
– Ela não precisa de auxílio pra cair no sono. É o ápice da medicina genética – dizia o cientista, empolgadíssimo com a revolução.
– Ela nunca quer conversar de madrugada?
– Essa criança fala bastante durante o dia, dona, garanto. Todas as pesquisas conduzidas nos últimos dois séculos mostraram uma imensa insatisfação dos pais com o sono interrompido. Acreditamos que não ser interrompido nunca é o sonho de dez em cada dez casais que vêm aqui para adotar um clone.
– Mas é que...eu não vou ter que pegá-la no colo para ninar?
– Não. Estará livre para sempre desse trabalho. Basta botar na cama, beijar e sair.
Olhares perdidos na sala. Um relógio holográfico mostrava as horas. Impaciente, o cientista cortou o silêncio.
– Vou deixá-los sozinhos um pouco para vocês decidirem. Na volta, basta me entregar a ficha preenchida. Com licença.
O casal deixou a ficha em branco sobre a mesa. Tentaria uma terceira criança normal, sem mudanças genéticas. Já tinha feito duas assim e viu que era bom. 

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