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domingo, 18 de agosto de 2013

Viagem à irrealidade cotidiana. Perigo. Perigo!

Como evitar que o "excesso de convivência" arruíne a viagem dos sonhos do casal?

POR CLAUDIA PENTEADO*
Viajar pode, ou não, melhorar a relação de um casal (Foto: Divulgação)
Viajar pode, ou não, melhorar
a relação de um casal
(Foto: Divulgação)

Uma amiga chega de Nova York e posta no Facebook a frase enigmática: "De volta ao Rio de Janeiro, mas já prospectando novos destinos". Pergunto se ela mudou de emprego. E ela me diz: “Não, acabo de terminar um namoro numa viagem de férias. Na realidade busco novos rumos afetivos”, confessou. Viagens deveriam ser momentos de relaxamento, descontração, em que um casal consegue finalmente livrar-se da rotina e somente se divertir e ter prazer por alguns dias. Certo? Nem sempre. Tenho ouvido, com frequência, relatos de amigos e conhecidos que brigam e até terminam relacionamentos durante férias pela Europa, por exemplo.
Um fator certamente une esses casos: em viagens, a convivência é total, irrestrita, ilimitada - algo que no dia a dia não ocorre. Numa viagem a dois você acorda, passa o dia e vai dormir com o parceiro, ou a parceira. Por mais que estejam, ambos, num clima de relaxamento, pode haver problemas. Minha amiga “R” diz que de fato rola um “excesso de convivência nas férias”: as pessoas são obrigadas a conhecer outros lados de seus parceiros(as) que não conheciam. E isso nem sempre é agradável. 
 Um amigo relata que já teve brigas com esposa durante viagens por causa de “excesso de gastos”. Esposas que se animaram demais com o cartão de crédito. Uma outra amiga me contou que, ao contrário, descobriu durante uma viagem ao Nordeste brasileiro o “pão durismo” do namorado ainda recente que, eventualmente, levou ao fim a relação – no final da viagem. 
“Ele anotava tudo o que eu e ele pagávamos, para que ficássemos quites. Tomávamos cerveja num bar e comíamos petiscos noutro porque era mais barato, ele pesquisava. Fiquei louca”, conta. 
Para o casal casado, ou que mora junto, o problema também ocorre. Outro amigo que vive com a namorada e chegou recentemente de uma rápida viagem de férias a dois diz que quando o casal sai da sua “rotina” e da sua zona de conforto, muitas vezes os comportamentos “mais naturais” durante férias podem incomodar.
“Minha viagem foi curta mas, certamente, se eu não fosse um cara muito paciente, teriam saído uma ou duas briguinhas. Em um ambiente novo e desconhecido, cada um quer fazer uma coisa, tem uma prioridade diferente. É difícil, mesmo pra um casal, querer tudo igual. Aí é o começo de tudo.”
O “querer tudo igual” é sem dúvida a grande cilada que atrapalha os casais não só durante viagens, como no dia a dia. É a fantasia entrando em ação, confundindo-se com a realidade.
Uma psicóloga de renome diz que no dia-a-dia em geral não há muitas expectativas no relacionamento mas, quando se planeja uma viagem, entram o sonho e a fantasia. Deparar-se com fragmentos de realidade chateia, frustra.
“Férias e viagens vêm com a cobrança da inteira felicidade e isso é ruim. É como se você fizesse um filme e não compartilhasse o roteiro”, comenta. 
Cada um tem um roteiro, é fato. Fiz a brincadeira no título com o famoso livro de Umberto Eco, “Viagem na irrealidade cotidiana”, somente pela conjunção interessante das palavras. Naturalmente, o tema do Eco não tem a ver diretamente com o que falo aqui – em seu livro, ele explora o “fake” na cultura norte-americana e o seu vazio histórico.
Quando viajamos, de certa maneira buscamos como destino a irrealidade, e isso inclui fantasiar parceiros perfeitos, noites ao luar inesquecíveis, falta de rotina. Uma amiga me lembra que há casais que “só dão certo em viagens”, e no dia a dia são um fracasso total. Típico caso de quem quer viver permanentemente no reino da irrealidade.
Alain de Botton diz em seu livro “A arte de viajar” que, se nossas vidas são dominadas pela busca da felicidade, talvez poucas atividades revelem tanto a respeito da dinâmica desse anseio – com toda a sua empolgação e seus paradoxos – quanto o ato de viajar. “Ainda que de forma desarticulada, ele expressa um entendimento de como a vida poderia ser fora das limitações do trabalho e da luta pela sobrevivência.”
Escancara-se no livro a infelicidade de um casal durante uma viagem. No fundo, ela serve para amplificar o quanto o casal é, de fato, infeliz – e nem uma ilha tropical é capaz de melhorar a situação. 
“Ficamos tristes em casa e culpamos o tempo e a feiúra dos prédios, mas na ilha tropical aprendemos, depois de uma discussão num chalé, sob um céu azul imaculado, que as condições climáticas e a aparência de nossa morada jamais serão capazes, por si só, de escorar nossa alegria ou nos condenar à infelicidade.”
Dito tudo isso, creio que há dois aspectos a ser considerados: um é que muitas vezes as coisas vão mesmo de mal a pior, e uma viagem pode se encarregar de escancará-lo ainda mais, no lugar de mascarar, como se desejaria. Outro aspecto é que contribuímos para tornar as coisas belas ao nosso redor (ou não). Raramente nos lembramos disso. Preferimos jogar esse fardo nas costas de algo ou de alguém, pois é muito mais fácil e indolor.
Há no livro “A Gaia Ciência”, de Nietzsche, um trecho que gosto muito: “Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas.”
Botton diz que estamos mais capacitados a habitar um lugar quando não enfrentamos o desafio adicional de estar mesmo presente ali.
Em viagens, talvez caiba pensar o quanto de nós viajou e o quanto foi deixado para trás, como um sapato velho esquecido. Esse sapato velho também é parte de nós – integra a nossa “realidade” cotidiana. Se ele incomoda, talvez seja hora de cuidar dele. Ou jogá-lo fora de vez.
  
* Claudia Penteado é carioca, jornalista, especializada em propaganda e marketing. 

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