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sábado, 10 de agosto de 2013

Reconstruir, reconstruir, reconstruir. Só assim o amor dá certo?

No filme "Antes da meia noite", Celine, como tantas mulheres, abre mão de seus sonhos para salvar o casamento e vira a grande mala da história

POR CLAUDIA PENTEADO*

Jesse (Ethan Hawke) e Celine (Julie Delpy)  casados no filme "Antes da meia noite": Final feliz? (Foto: Divulgação)
Se você não assistiu ao filme "Antes da meia noite" - e ainda pretende vê-lo -, melhor não prosseguir, pois o texto contém detalhes que entregam a história. Logo que estreou, fui assistir ao terceiro filme da série que uniu Jesse (Ethan Hawke) e Celine (Julie Delpy) e teve início nos anos 90, em "Antes do Amanhecer". A trilogia conta os encontros e desencontros de um casal bem improvável: uma francesa intelectualizada e idealista e um americano...digamos que "bem americano", que sonha em ser escritor e acaba encontrando na sua história com Celine o tema ideal para seu primeiro romance de sucesso, lançado no segundo filme, "Antes do pôr do sol" - que reúne o casal em Paris nove anos depois do primeiro encontro em Viena.
O final do segundo filme insinua que eles finalmente ficarão juntos, contra tudo e contra todos - uma vez que é, desde sempre, claro o forte contraste de personalidades e visões de mundo entre os dois. Da "charmosa" incompatibilidade de crenças, nasce a sequência um tanto quanto explosiva à qual dedico esse texto. Em território neutro - nem França, onde moram, nem EUA - o casal ressurge casado e pais de duas meninas gêmeas, de férias na Grécia. O que marca a trilogia é sempre o texto. Uma amiga - que chamarei de "N" - diz que ao final de cada filme ela se sente como se tivesse lido um livro.    
Em "Antes da meia noite", mais uma vez Celine e Jesse não param de falar, falar, falar. O fato de estarem de férias parece contribuir para finalmente reconectá-los e fazê-los conversar sobre diversos assuntos, saindo das banalidades monossilábicas do dia a dia clichê de casais casados. O primeiro diálogo é interminável e confesso que me causou, pela primeira vez, uma certa impaciência. É porque se os dois primeiros filmes foram marcados por divertidos devaneios filosóficos, nesse o choque de realidade é um banho de água fria, desde o primeiro instante.    
Celine e Jesse vivem um casamento que não parece nem feliz nem infeliz, mas Celine acaba revelando-se imensamente frustrada pela sensação de ter aberto mão de mais sonhos do que o marido, e joga em suas costas toda sorte de carências. Mais uma vez um tremendo clichê, e assusta porque revela a Celine potente dentro de cada uma de nós mulheres. O hábil Jesse sai-se sempre melhor. Celine enxerga muitos tons de cinza em quase tudo, e Jesse é bifásico, prático e direto ao ponto.
A cada argumento estapafúrdio de Celine, numa briga deslocada em uma noite em que tudo deveria ser perfeito, Jesse contra-argumenta com a habilidade de um espadachim, enquanto a plateia do cinema reage com resmungos, sorrisos e provavelmente grandes doses de identificação. Porque é inevitável. Certamente bateu na maioria das pessoas a estranha sensação de ter vivido alguns daqueles momentos, proferido ou ouvido várias daquelas frases, num déjà vu dos infernos - graças ao talento primoroso do roteirista Richard Linklater.    
Minha amiga "N", que compara os filmes a livros, aponta esse "hiper realismo do filme" como um fenômeno dos nossos tempos: "a crise da crise da representação". "O realismo nas artes está aí, mostrando uma força incrível para afetar.", diz. Não é à toa que o texto masculino é mais no ponto, "sem arestas", enquanto se escancara a verborragia mais espinhosa da mulher. É porque é assim na vida, mesmo. O texto dos homens costuma ser, em geral, mais no ponto.
Nós mulheres partimos, frequentemente, em embates com nossos parceiros, para o descontrole verborrágico e bélico. A jovem "N" não concorda com o rótulo de que as mulheres são mesmo umas "chatonildas", como descreveu a escritora Martha Medeiros em sua coluna sobre o filme. Para "N", tanto na trilogia Jesse e Celine como na vida, homens e mulheres revezam-se nos papéis de "malas". Tendo a concordar que no primeiro filme da trilogia o mais "mala" era de fato Jesse. Celine era jovem, brilhante, esperta, desapegada, cheia de sonhos.
No segundo filme, os dois estão um pouco "malas", infelizes com suas vidas, cada um por seus próprios motivos. Não há ainda um "grande mala", título que acabou encaixado em Celine em "Antes da meia noite". Então é o casamento que termina por nos transformar, finalmente, nas grandes malas da história? Minha amiga "R" lembra de sua separação recente e comenta: "A Celine demorou seis anos, duas filhas e um enteado pra ficar daquele jeito no casamento. Eu levei apenas seis meses e nenhum filho." 
"R" diz que as mulheres são mesmo umas "loucas", mas que devem ser perdoadas porque a culpa seria da desigualdade. Segundo ela, as mulheres costumam perder a mão porque estão no meio do caminho entre serem um pouco mães, grandes profissionais e amantes, sem saber a medida certa de cada papel.
Aprendemos com nossas mães que devemos "cuidar" dos nossos maridos e se preciso abrir mão dos nossos sonhos para que eles possam viver os deles, como muitas delas fizeram. Nesse meio tempo, o mundo mudou e nos permitiu ir atrás dos nossos sonhos também, mas sem sair completamente do lugar antigo - porque muitas vezes uma Amélia insiste em viver dentro de muitas de nós. :) Mulheres "de verdade", desconfio que as Amélias contemporâneas sejam as garotas de programa, amadas pelos homens - e, secretamente, por nós mulheres - justamente por não viverem quaisquer conflitos.
Cuidar faz parte da natureza feminina, assim como a missão de "prover" foi ensinada aos meninos e muitos homens hoje frequentam salas de terapia tentando abandonar esse fardo, num conflito semelhante ao nosso. Porque também eles passaram a ter novos sonhos. De fato, o maior vetor da "briga" entre Celine e Jesse em "Antes da meia noite" é ela sentir-se acuada a modificar sua vida em função de um desejo do marido. Em conflito, desfia um rosário de frustrações cuja culpa repousa, naturalmente, nos ombros dele. O episódio posiciona Celine e Jesse como o clássico casal clichê que coleciona frustrações - erro se comete porque aprendemos que casar é "abrir mão" de muitas coisas de que gostamos, é ter de fazer "escolhas", mas sempre de um jeito meio desequilibrado. É um exercício de resiliência.
Jung diz que é comum iniciarmos um relacionamento com pouca consciência do parceiro. O que enxergamos são ideais de masculino e feminino que nada mais são que projeções de nós mesmos, e que vão sendo desconstruídos causando estranhamento, como se de repente o outro surgisse "do nada". Amar verdadeiramente seria, na visão de Jung, abandonar os idealismos e ser capaz de amar defeitos e qualidades do parceiro. Talvez por isso ele compare amar a um ato de "sacrifício". "Não sei se concordo com a metáfora do sacrifício, eu trocaria sacrifício por reconstrução. Talvez ao longo do tempo a gente precise reconstruir a relação com nossa alma e com nosso parceiro (a). É essa disposição para construir e reconstruir que torna possíveis as relações legais", opina um amigo psicólogo.
De fato, o filme termina com o que parece ser um sopro de reconstrução. Celine tem o olhar de quem reconhece que exagerou. Jesse parece sentir que ainda vale a pena manter-se junto da mulher amada. Cada um a seu jeito, parecem buscar o reencontro, sabendo que a vida não se transformará num paraíso. Talvez tenham aprendido a se reconhecer um pouco mais humanos e imperfeitos, capazes de se amarem assim mesmo - um ao outro e a si próprios. Não seria esse o final mais feliz possível?  

* Claudia Penteado é carioca, jornalista, especializada em propaganda e marketing.

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